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Original text "Hoe we minder zullen worden" written in NL by Rebekka de Wit,
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Published in edition #1 2017-2019

Como nos tornaremos menos

Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Rebekka de Wit

1.
Na sua sala de estar, encontra-se pendurado, para além de um calendário, a conta de um restaurante onde tinham decidido ficar juntos e algumas fotografias, uma lista de todos os animais e plantas que se encontram em risco de extinção: 3.079 e 2.655, respetivamente. Ela já tinha esta lista desde os seus treze anos, e, por ausência de autocolantes, tinha colocado pensos junto aos animais que desejava ver.
Ele pensou que se tratasse de uma lembrança da infância dela e nunca tinha considerado a possibilidade de irem à procura de animais e plantas em risco de extinção.
Quando um novo animal entrava na lista, falavam, por alguns momentos, acerca do assunto, mas não de uma forma que sugerisse que iriam viajar dois mil quilómetros para encontrar aquele tipo de sapo particular. Para além do mais, ela apenas tinha acampado três vezes em toda a sua vida, nunca tinha caçado girinos, e nem sequer as plantas sobreviviam com ela.
Mesmo assim, ela abriu uma conta bancária. Todos os meses, depositava cem euros na conta para a viagem, e quando já tinha poupado o suficiente e anunciou que, ainda este ano, iria ao Quénia e ao Congo, ele ficou triste.
Ele próprio tinha poupado para renovar o esgoto debaixo da casa, a fim de acabar com o ar de latrina persistente no corredor. Achava o plano dela ridículo e sentia-se sozinho.

2.
A caminho do aeroporto, estava a chover.
"Não tenho a minha roupa impermeável comigo", diz ele.
"Eu também não", diz ela.
Ele dá uma olhada na previsão do tempo.
Ela abre a mochila e olha para a lista com os pensos.
Ela queria ir ver o Sudan, o último rinoceronte branco macho, ou, na verdade, o último rinoceronte macho do norte, que ainda estava vivo quando eles tinham reservado um bilhete para o Quénia, mas que entretanto já tinha morrido. Ela sabia que era um risco. Ele já tinha quarenta e quatro anos quando foram à procura de voos, algo que é uma idade bastante avançada para um rinoceronte branco do norte. Para além do mais, era vigiado por quatro helicópteros, quinze homens com facas do mato que sabem exatamente onde é que o Sudan gosta de ser coçado, pelo que, mesmo quando ele ainda se encontrava vivo, ela achava que nunca iria conseguir penetrar esta barreira.
3.
No avião, está a ver um documentário da BBC sobre a natureza, e ela está a dissecar a sua refeição.
"É frango?", Pergunta ele.
"Sim, acho que sim", diz ela. "Pelo menos, é isso que está no rótulo."
"De que é que se trata?" Ela aponta para o pequeno ecrã de televisão.
"É acerca de escaravelhos de excrementos. Foi descoberto que os escaravelhos de excrementos se tornam tão grandes quanto o buraco que eles escavam para si mesmos, e este processo foi filmado."
Ela sorri, quer anotar isto, mas a sua mesa encontra-se cheia de comida. Quando a hospedeira de bordo, uma hora mais tarde, leva o lixo, ela, ainda assim, tira o livro da bolsa e escreve se tal coisa também se aplica às pessoas. Se o "tamanho" das pessoas é determinado pelo ambiente em que elas se nidificam. E se é possível influenciar tal processo. É possível uma pessoa tornar-se maior quando se rodeia de pessoas com grandes mentes? Ela escreve-o em letras maiúsculas. E em baixo, entre parênteses: em sentido figurativo, claro.
Ela tem pena de ele não ler aquilo que ela escreve no seu bloco de notas.
Ele tem orgulho de não ler aquilo que ela escreve no seu bloco de notas.
Ele quer ver a previsão do tempo, quando se encontram no Quénia. Dando conta que não é possível, suspira. Olha para a revista com produtos livres de impostos e desenha um bigode no rosto de um homem a recomendar uns altifalantes sem fios. 

4.
Em Istambul, perderam a ligação entre voos, porque ela lhe queria oferecer um bom pequeno-almoço. Ele sabia que era um risco, mas ela não, porque não se tinha lembrado do fuso horário. Ele apenas pediu café. Ela perguntou-lhe se ele realmente queria fazer isto: ir ao Quénia com ela. Depois de vinte minutos a tentar convencê-la de que realmente queria ir com ela, acabam por perder o voo.
A porta de embarque onde agora se encontram está vazia, como se fossem os últimos a chegar a uma festa à qual ambos não queriam ir.

5.
"Tens medo de não conseguir encontrá-los? Os animais da tua lista? "pergunta-lhe ele, quando já se encontram novamente no ar. Estão cansados.
"Não", diz ela. "Temo que haverá demasiada gente. Em todos estes lugares. E que todos me vão parecer estúpidos. As pessoas, quero eu dizer. E depois, ter que admitir que sou precisamente como eles. Tal como o resto da humanidade, que só consegue chegar a um cessar-fogo quando tudo já se encontra, há muito tempo, destruído. Que apenas quer proteger tudo quando já é tarde demais."
A hospedeira de bordo dá-lhes uma toalha quente. Por um instante, faz-se silêncio.
"Para as pessoas, quase todos os animais se dividem em duas categorias: ou eles se encontram em risco de extinção, ou eles são uma praga. Eu tenho imenso medo que seja assim que as pessoas são. Que seja sempre demais ou não suficiente. Insatisfação patológica. E que este descontentamento nos torna tão violentos."
Ele emite um som, algo que se situa entre compreensão e amor, e cheira as suas mãos. Recorda o restaurante chinês onde ia enquanto criança, e limpa, de seguida, as mãos dela com a sua própria toalha. 

6.
No Quénia, está tanto calor que o ar parece inchado.
Ela tenta encontrar o endereço onde vão ficar alojados. No Google, dá de caras com a sua última pesquisa, "a extinção é uma coisa má?", e o primeiro link é um artigo que descreve como os mamíferos puderam surgir como resultado da extinção dos dinossauros.
Ela está irritada. Não por causa dos artigos, mas sim porque agora está à procura de uma resposta para a questão por que razão é que está aqui. Por que razão é que eles estão aqui.
Apanham um táxi para o hotel. Na cama, ele lê um ensaio no qual alguém descreve espécies animais como uma invenção antropocêntrica e, como tal, vê a extinção de animais também como um problema antropocêntrico.
“O que é que estás a ler?” pergunta ela enquanto corta as unhas dos pés na varanda do quarto.
Ele lê-lhe o artigo, deixando algumas partes de lado, com a convicção de que ela, mais tarde, também irá ler o artigo, e que vai querer falar acerca disto por bastante tempo.
Eles estão deitados na cama, acordados, debaixo do som do ventilador, e é por pouco que os seus corpos não se tocam.
"Também queres ver plantas?", pergunta ele. 


7.
A caminho do habitat do último rinoceronte branco, ela lê uma coluna através do seu telefone com o título "nós sentimos falta do dodo?"; ele está a ver um filme da National Geografic:
Conheça os Heróis que Protegem os Últimos Rinocerontes Brancos do Norte do Mundo.
Ele reconhece uma música que é usada por um vídeo que ele próprio criou. Ele para o filme para ir à procura do seu próprio vídeo.
Eles encontram-se a caminho do sítio onde o Sudan morreu. Ele tem uma filha e uma neta que se encontram num abrigo onde ninguém pode aceder. Ambos têm, aparentemente, uma constituição demasiado débil para terem filhos. Quando lê que os rinocerontes têm um peso de nascença de sessenta e cinco quilos, surgem lágrimas nos olhos dela. 

8.
À entrada do parque, têm de esperar até lhes ser dada permissão para entrarem. No formulário para atribuição de licença, têm de preencher a qual clã é que pertencem. Porém, tal campo tem de ser deixado em branco, porque "os ocidentais não têm um clã", diz o homem que lhes entrega os formulários.
No posto de controlo, também existe uma loja onde se podem comprar chaveiros do Sudan. As pessoas tiram selfies com o chaveiro.
Também ela vê o filme dos heróis e desata a chorar.
Ele sente-se envergonhado. Esquece-se de consolá-la.
"Tens de ver este filme", diz ela. "Muito bonito."
Ele vê o vídeo, uma vez mais.

9.
Ela conta que acha bastante bonito o facto de os homens no filme estarem vestidos com um uniforme militar. E de estarem sentados num banco de cozinha com um balde de lama ao lado dele, a esfregar a sua barriga, apesar de carregarem balas suficientes para matar uma manada inteira de turistas. Que eles se encontram juntos deitados na relva. Aquele rinoceronte e aqueles homens. E que ela não se está a referir ao Flipper. Que ela não se deixa comover pela amizade entre pessoas e animais, ou talvez sim, mas que aqueles seres, aqueles homens e aqueles rinocerontes são tão calmos. Que ela pode imaginar que no passado, neste sítio, as pessoas também aqui caminhavam, tal come as zebras entre os leões. E que saímos, e agora regressamos com nossos binóculos desprezíveis de forma a capturar algo de onde viemos.
Ele tenta segui-la, tal como, no passado, procurava seguir borboletas. Em silêncio, com os olhos entrecerrados.
"Entendes?", pergunta ela.

10.
É-lhes dada permissão de entrada. O guia leva-os ao local onde o Sudan morreu. Viajam à volta de uma hora por um extenso mar de erva. Não há nada para ver. Turistas também não. O guia diz que há elefantes à distância, mas que eles provavelmente não conseguirão vê-los.
Ela pergunta se há mais pessoas interessadas em ver este lugar, e o guia acena em sinal de concordância.
"It’s like pilgrimage."
Ela parece dececionada. Por momentos, faz-se silêncio. O guia vai fazer xixi e diz, de seguida, que é precisamente isto que é bonito. Ir a lugares onde existia algo que deixou de existir.
" You also like Sudan?", pergunta o guia a ele.
Ela diz que ele só veio por causa dela.
" Also good ", diz o guia.
Sentados no carro com a porta entreaberta, comem uma sanduíche. Ele diz que pensou acerca do assunto e que realmente é mais bonito que o Sudan já lá não esteja. Apressa-se, então, a dizer que não era exatamente isto que queria dizer. Que uma peregrinação talvez seja a melhor coisa que se pode fazer pelo Sudan. Ela traduz para o guia e ele acena em jeito de concordância.
" I agree." Ele sorri. Ela sorri como reação ao seu sorriso.

11.
Ele pergunta-lhes se também querem ver girafas. O guia explica que em todas os desenhos animados existe uma girafa, e que, por esta razão, as pessoas pensam que existem muitas girafas. Porém, também elas estão a desaparecer. Ela acena com a cabeça e tira fotos do guia, o qual se encontra a olhar à sua volta no sentido de saber para onde ir.
"Receio que me tornarei menos, assim que não houver mais girafas", diz ele, sorrindo para a fotografia.
  "Menos?", pergunta ela.
"Sim", diz ele. "Menos"
"Se a girafa desaparecer, um pedaço de mim morrerá. O espaço entre mim e a girafa morre. E se esse espaço morre, o espaço entre nós, então, torno-me maior. Então, vou ocupar mais espaço. E quanto mais lugar eu ocupar, mais animais terão que abrir espaço para mim. Então, as coisas fortalecem-se. Isto é ...
Ele vai à procura de palavras.
"Não é bom?", pergunta ela.
"Não é bom", diz ele.  

12.
"O Sudan tem milhões de anos. O Sudan podia estar na casa dos quarenta, mas ele já aqui estava antes de nós aqui chegarmos. Os seus ancestrais. Só entre estes animais é que se consegue saber o quão grande uma pessoa se pode tornar. Quando o Sudan jazia morto virado de lado, não era apenas um hipopótamo que se encontrava ali deitado. Milhões de anos estavam ali deitados de lado. Apenas se consegue compreender a quantidade de tempo que nos precedeu, olhando, por exemplo, para o Sudan. O acesso a este tempo desaparece juntamente com ele".
O guia quer ver a fotografia e é da opinião que ficou bem.
O sol põe-se. Os dois homens sentam-se à frente, ela atrás, e vão de regresso. O guia pergunta-lhe se ele tem um clã. Ele explica que não é exatamente assim que as coisas funcionam. Que ela, apontando para ela, é o seu clã. Ou aquilo que se encontra mais próximo do conceito. Ela encontra-se sentada no banco de trás do carro, e não segue a conversa. Reflete sobre o termo "período de gestação". Que é um termo bonito. Que um rinoceronte não apenas traz um ano e meio de vida nova consigo, mas também imenso tempo. E que sessenta e cinco quilos será, provavelmente, o mais pesado que alguma vez terão de carregar consigo, para além dos dois mil quilos que já pesam, e que eles carregam estes sessenta e cinco quilos sem terem noção de quem carregam. Ela questiona-se quanto é que gostaria de carregar sem saber aquilo que é. Ela questiona-se se já o faz.
Quando vai buscar o bloco de notas para registar a ideia, dá com a lista na sua carteira. A lista de espécies de animais que tencionava ver, sobre as quais tinha colocado pensos.
Ela questiona-se se a família do guia também tem uma lista assim pendurada. Provavelmente não, pensa ela. Presumivelmente, uma lista de espécies quase extintas na sala de estar do guia não será uma lista de coisas a ver, mas sim uma oração.
Ela não faz nenhuma anotação. Apenas sorri e adormece por breves momentos.

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