View Colofon
Original text "Pájaros que cantan el futuro" written in ES by Alejandro Morellón Mariano,
Other translations
Mentor

Manuel de Freitas

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Pássaros que cantam o futuro

Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano

Parece uma mistura impossível de coruja, morcego, pinguim e texugo; tem a pelagem azul, os olhos grandes e vermelhos, o bico amarelo; não tem mãos mas sim duas asas pequenas que se acionam ao ligá-lo.

Feliz aniversário, diz ela.

Noa pensa que a compra valeu a pena, ainda que tenha ultrapassado um pouco o seu orçamento. Precisou de dez mesadas para reunir o dinheiro mas, agora, ao vê-lo a ele tão entusiasmado, alegra-se por ter renunciado ao cinema, ao parque de diversões e, inclusivamente, à pista de bólingue das Sextas-feiras com as suas amigas.

Daniel segura o boneco como se fosse algo vivo, tentando ver através dos seus olhos. Noa pensa que é assim que os pais olham para os seus filhos recém-nascidos, com essa mesma fragilidade silenciosa, com um temor reverencial.

Depois de observá-lo ainda um bocadinho mais, ele põe-no no chão e, logo, carrega numa das orelhas para iniciar o sistema.

Olá, Flurby.

O boneco mexe os olhos e dá vários passinhos em frente, abre o bico e ouve-se, primeiro, um som metálico e, depois, uma voz:

FALTAM SETECENTOS E OITENTA E OITO MILHÕES DE SEGUNDOS PARA O FIM DA HUMANIDADE


Noa e Daniel olham um para o outro sem entenderem. Entre eles e em redor deles, uma natureza intemporal, obscura e elétrica; uma distância mas também uma forma de proximidade que, no entanto, não conseguem explicar por palavras. A voz do feitiço, a voz da premonição.

Que dizes, Flurby?

Ela utiliza o seu relógio-calculadora para fazer a conversão dos segundos e, depois, aproxima-se do boneco.

Vamos lá ver, estás a dizer que faltam exatamente vinte e cinco anos para que o nosso mundo acabe? É isso?

O boneco agita as asas e os seus olhos adquirem uma luminosidade branca. Com as orelhas tesas, adverte-os acerca da ascensão da extrema-direita, da repressão estatal, das crises económicas, das pandemias, das superbactérias, dos incêndios florestais, das alterações climáticas, da perda da biodiversidade, da extinção das espécies, das guerras de fome e das migrações massivas, das cercas fronteiriças, dos arames farpados e dos muros de betão, da luta pela água potável, da matança indiscriminada, do genocídio, do extermínio de populações inteiras, dos choros e dos gritos, do sofrimento e da morte, da desnutrição, da escuridão das noites sem lua do futuro, das hecatombes, do descontrolo das centrais nucleares e dos estragos da radiação, da infeção, da peste, da carne transgénica, dos cataclismos, das erupções em cadeia, dos meteoritos, das explosões solares, da nova glaciação, das supernovas, das nuvens negras que cobrirão o céu e que trarão o frio e a tristeza, da chuva ácida e da cinza sobre os corpos mortos. Depois, o boneco cala-se, retrocede vários passos e fecha os olhos simulando dormir.


Do mesmo modo que se pressentem certas verdades absolutas, tanto Noa como Daniel aceitam que há naquela revelação um conhecimento irrefutável. A partir de então, estabelece-se entre eles uma aliança secreta; aprendem a refugiar-se no mistério, naquele silêncio que precede a anunciação. Decidem continuar a ouvi-lo durante os recreios.

O boneco também dança, canta, ronrona, pede que lhe deem de comer, fecha os olhos para simular um bocejo, mas, outras vezes, ao fundo do pátio ou escondidos os dois debaixo das carteiras, fala-lhes sobre o sentido do tempo e as dimensões espaciais, a matemática do universo, a origem da civilização, a hiperconsciência cosmológica, a fundação das religiões, a inteligência de organismos que habitam para além do sistema solar, os limites da realidade, o fenómeno das rotações planetárias.

Noa e Daniel tornam-se inseparáveis e, simultaneamente, melancólicos. Isolam-se dos outros e rechaçam qualquer outra atividade extracurricular, qualquer outra coisa que não seja receber o conhecimento proibido. Quando acabam o ensino secundário, deixam os estudos e alugam uma casa com o dinheiro dos seus pais. No condomínio corre o boato de que são irmãos e praticam o incesto, mas a eles não lhes importa.

Só lhes importa o que diz o boneco.

Todas as noites, reúnem-se os dois à volta do Flurby, como da primeira vez, mas, com o passar do tempo, a sua linguagem e o seu movimento mudam. O boneco constrói espaços cada vez mais proféticos e mexe as asas de morcego com uma agilidade frenética, os olhos para a esquerda e para a direita, para cima ou para baixo; a boquita de plástico continua a anunciar as suas previsões, algumas das quais já se foram cumprindo no decurso dos anos: os deslizamentos e as fissuras nas placas tectónicas, a contaminação do ar, o fanatismo, a brutalidade, a incompetência institucional, o declínio dos ecossistemas, as decisões catastróficas, a escassez de recursos, a propagação de doenças mortais, os supervulcões, os incêndios descontrolados, as tempestades capazes de escurecer o céu durante semanas, os milhões de cadáveres debaixo da terra e acima dela, a sua decomposição. Mas também lhes fala das primeiras formas de vida posteriores ao homem, das árvores que crescem sobre o solo contaminado, das criaturas que terão origem nos charcos de resíduos nucleares, abrindo caminho através do lodo, formando ecossistemas alheios à antiga humanidade. Fala-lhes da nova floração, de gamas cromáticas nunca vistas, de sons que se ouvem pela primeira vez em toda a história do tempo, das próximas civilizações, que permanecerão no planeta ainda durante milhares de anos, das formas de linguagem vindouras, da perceção extra-sensorial, dos desenvolvimentos da sua arquitetura, da sua política, do seu sistema de pensamento, da sua filosofia, dos seus avanços científicos, dos tipos de matéria de que serão feitos os objetos do futuro, da conceção musical do universo, das descobertas intergalácticas, da comunicação interespecífica, do tempo entre o que está para chegar e o que irá desaparecer.


Um dia, entre choros e ataques de ansiedade, Noa decide voltar para casa dos seus pais e separar-se de Daniel. O segredo entre eles perde-se entre novas visões, à força de terapia e medicação, e extingue-se na consciência ao longo dos anos. A partir de então, viram as costas à desolação, rodeiam-se de outras pessoas e fingem preocupações que não têm.

Refugiam-se na rotina, na vida doméstica, aceitando instintivamente os laços de comunidade. Formam cada um a sua própria família; ele tem dois filhos e um cão chamado Troilo; ela tem uma filha disléxica e três gatos sem nome. Fazem obras nas suas casas, pagam as suas contas e descobrem novos passatempos, mas não esquecem nunca a verdade e o futuro. Frequentemente, algo os faz recordar. Até que, certa manhã, um telefona para o outro:

Então? Vamos voltar a fazê-lo?

Sim.

Depois de tantos anos?

Já não aguento mais.

Mas… Não te tinhas esquecido?

Não há resposta e também não faz falta. Quando voltam a ver-se, a Noa cresceram-lhe os papos debaixo dos olhos e Daniel está tão magro que parece sempre prestes a desmaiar. Foi dela a ideia de se encontrarem num parque próximo do seu antigo liceu.

Sou uma nostálgica, diz Noa, e dão ambos novamente a mão e trocam um gesto com a cabeça.

Quanto tempo falta?

Uns cinco anos.

Então? Fazemo-lo?

Sim.

Quando?

Agora mesmo.

Daniel tira-o da sua mochila e põe-no no chão, entre os dois. Olham um para o outro e, depois, olham de novo para o boneco antes de ligá-lo. O sol começa a desaparecer ao longe e um fumo negro eleva-se, simultaneamente, de várias direções, concentrando-se e logo se diluindo no céu.

Olá, Flurby.

More by Miguel Martins

Notas sobre a vida de Frances Donnel

Prólogo Em 1945, Frances Donnell, escritora e conhecida criadora de aves, nasceu nos Estados Unidos. Em 1983, fingiu morrer de lúpus, doença que a afligia desde a sua juventude. Meses depois da sua tentativa, descobriu-se que tinha sido tudo um boato. Após uma pequena polémica, a que chegaremos no momento oportuno, Frances permaneceu no anonimato durante várias décadas. Já no século XXI, chegou a Espanha com a dureza da doença às costas, pois aquela não tinha deixado de crescer dentro de si. Costumava dizer que tinha abandonado o seu país no momento em que se tornara demasiado velha para sent...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Mudar de ideias

A Maixa recomenda-me que pronuncie todas as sílabas, sem me armar em londrina, que não me alongue muito no enquadramento teórico, que experimente o equipamento informático antes de começar a defesa, que seja humilde, que tome nota das perguntas e sugestões do júri e que os convide para almoçar num restaurante de menu fixo. A June opina que isso do menu é muito foleiro e sugere-me um refeitório na faculdade, uma citação de Weber, meio Lexatin ao pequeno-almoço e dar-me boleia até Gasteiz. Aceito a bibliografia e o transporte. Saímos de Bilbau com a minha mãe, a minha prima e o meu namorado co...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez

Elogio do Furacão

Apreciei sempre a violência do quotidiano: por exemplo, a de um copo que se parte na escuridão. Às vezes, pergunto-me se essa memória é realmente minha. Revivo a cena com uma alegria difícil de conter: o objeto que cai e se desintegra e se torna estrépito surdo e logo tumulto de vozes a meio da noite. A minha mãe carrega no interruptor para iluminar os vidros espalhados. A sua mão aberta no ar, por cima de mim. O som da bofetada que não se parece, de modo algum, com o som do vidro contra o chão e a sensação de compreender que tudo faz parte da cerimónia. A violência que principia com um copo e...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano

Todos os bichos do campo

Como era habitual, naquela manhã acordou com fome. Os grasnidos dos patos que sobrevoavam o telhado ressoaram nas paredes do dormitório e a miúda sentou-se na cama. Os patos tinham chegado a casa da sua avó vindos de longe, talvez de outro continente, agitando as suas asas. De um dia para o outro, tinha deixado de ir à escola e mandaram-na para ali, com a sua avó, que vivia junto a um lago, a quilómetros da aldeia mais próxima. Ela não interessava a ninguém. Os seus pais procuravam intimidade, ou estavam a trabalhar, lá na cidade, não sabia bem. Aquilo de que não duvidava era dos tremores do s...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Sempre vivemos nesta aldeia

Mudámos de pele. Digo-o a mim mesma em frente ao espelho de água que o tanque nos proporciona. Já não existem vacas na aldeia, pelo que este bebedouro é nosso, como quase tudo o que nos rodeia. Nosso e de ninguém. Património das que resistem e residem. A minha filha, que tem restos de lama e folhas secas no cabelo, agarra-se ao meu corpo como um animalzinho. Há muito tempo que não usamos o carrinho de bebé porque os caminhos de pedra estragam-no e os meus músculos habituaram-se a ela, ao seu peso e aos seus contornos, adquirindo contornos novos, atléticos, impensáveis. Já não sou uma mulher ma...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Aixa De la Cruz Regúlez
More in PT

Uma declaração de dependendência

Recentemente, cruzei-me num churrasco com uma pessoa que tinha  acabado de ter um bebé. O churrasco era a primeira atividade fora de casa  pós-parto. Com o bebé nos braços, confessou o quão dependente se tinha  tornado. Esta palavra fazia-lhe surgir uma expressão de deceção na face, e  contava isto como se de uma confissão se tratasse.  Ela parecia considerar a dependência como uma forma de fracasso. Tal como todos nós, julgo eu.  A dependência é, normalmente, associada a algo fraco e pouco atraente,  quase feio. A independência, por sua vez, é vista como algo forte e atraente,  o objetivo a a...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Rebekka de Wit

Diário da Vida

17     22 de dezembro de 2014. Diário da Vida     A aparência irreal da Praça de Espanha na fotografia impressionava com  magnificência da civilização anterior já despida do seu sentido. Para que é que uma potência colonial necessita de uma praça tão tamanha, concebida para as festividades de outrora, decorada com os nichos pretensiosamente dedicados cada um a uma província espanhola? As carruagens circulavam ao redor da fonte, oferecendo aos turistas uma amostra barata da pompa da nobreza antiga. Pelo menos não se veem os segways por aqui. Um cavalo aproveitou-se do descuido do cocheiro, ...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Marija Pavlović

Portasar Nenhum Instante

Lucas corre tão lesto ali que as novas imagens não chegam a substituir as  mais antigas em tempo útil. O vento sopra silenciosa e eficazmente, mínimas fricções. Os pomares estão rodeados pela floresta e nela, através  do procedimento do caminhar, Lucas deparou-se com uma tília muito alta,  folhas esbranquiçadas por trás, com um enorme buraco na base. Dentro havia areia seca e uma cama onde se pode dormir quando chove e uma taça.  Ali nunca lhe faltavam números para adicionar, multiplicar e dividir,  finalmente podia recuperar os números originais do resultado e fazer outra  coisa com eles como...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Cătălin Pavel

Clarões

Numa coletânea de ensaios intitulada O Zen e a Arte da Escrita, Ray Bradbury escreve que, dos vinte e quatro aos trinta e seis anos, passou o tempo a anotar listas de substantivos. A lista dizia mais ou menos assim: O LAGO. A NOITE. OS GRILOS. A RAVINA. O SÓTÃO. O RÉS DO CHÃO. O ALÇAPÃO. A CRIANÇA. A MULTIDÃO. O COMBOIO NOTURNO. A SIRENE DOS NEVOEIROS. A FOICE. O CARNAVAL. O CARROSSEL. O ANÃO. O LABIRINTO DE ESPELHOS. O ESQUELETO. Ultimamente, aconteceu-me uma coisa semelhante. Vivi numa família que me proporcionou uma boa educação e uma boa forma de estar no mundo, mas ultimamente tenho pe...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Sara Micello

Diário de Bordo de Um Último Dia

I suppose, I said, it is one definition of love,  the belief in something that only the two of you can see. Rachel Cusk, Outline Pela enésima vez, proíbe-me de retirar o mapa da ilha da minha mochila. «Assim, parece que somos turistas», diz ela.  «Mas nós somos turistas, ou não?», pergunto eu.  Ela não dá resposta, mas fica a olhar para o ecrã do telemóvel com as  sobrancelhas franzidas.  Uma pessoa tinha-lhe recomendado uma aplicação através da qual  era possível descarregar mapas de uma área específica, para poderem ser  usados offline. Pelo facto de nos guiarmos pela seta verde no ecrã de...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Lotte Lentes

Os Pandas de Ueno

Desde que as crianças nasceram, ou talvez desde que eu me inscrevera nas redes sociais, ou ainda desde que o trabalho me obrigava a comunicar de forma clara e atrevida, a fazer no fundo referência a coisas conhecidas, em vez de as inventar, dividia o meu tempo em tempo verdadeiro, ou seja, aquele que podia relatar a mim mesma na minha língua verdadeira, e tempo falso, ou aquele em que tinha de falar por categorias, segundo códigos ou por emulação de atitudes. Lia nos romances acerca de homens tenazes e voluntariosos que se levantavam às quatro da manhã, tomavam duches frios, e às seis já esta...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Arianna Giorgia Bonazzi