View Colofon
Original text "Draden" written in NL by Hannah Roels,
Other translations
Mentor

Arie Pos

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Fios

Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

A procura não começa de forma consciente. Sinto-me ligada a ela de uma forma perturbadora, inexplicável, e o seu desaparecimento deixa-me sozinha frente às minhas interrogações. Ao acordar pergunto-me onde dormirá e como vive e continuo a pensar nela, masturbando-me doce e suavemente entre os lençóis enquanto olho para as nuvens pela janela basculante. Quando passo pelas barracas de fruta no nosso bairro, vou tocando nas laranjas com as pontas dos dedos, até que encontro uma que me lembra a sua pele, uma com os poros perfeitos.

Aterrei nas suas aulas de yoga devido às minhas constantes dores no pescoço. O fisioterapeuta aconselhou-me esse tipo de yoga, o método Iyengar, porque utiliza acessórios seguros para principiantes que sofrem de esgotamento como eu. Entrei no estúdio e fiquei logo rendida ao ver as cordas, os blocos e as almofadas empilhadas ordenadamente contra a parede. Fiquei rendida à promessa de controlo e domínio que emanava delas. Mas apercebi-me rapidamente de que esses atributos serviam exatamente para eu abrir mão do controlo. A única coisa agradável dessa primeira lição foi a postura savasana no fim da aula, em que podíamos fingir que estávamos mortos. A imobilidade deliciosa dessa posição deitada, enquanto ela passeava entre os nossos cadáveres. Continuem a respirar, sigam a vossa respiração como se fosse um fio que passa pelo nariz e segue pelo lábio superior. Concentrem-se na respiração.

Senti logo uma aversão pelas outras alunas, pela maneira como planavam pela rua com os tapetes enrolados debaixo do braço, pelas suas vozes lentas, pela forma como se sentavam em posição de lótus contra a parede antes do início da aula… sonhava arrancar-lhes as garrafas de água coloridas e vê-las fazer beicinho. Odiava todas as pessoas do yoga que estavam à minha volta, menos ela. Era a maneira como ela apanhava o cabelo preto, forte, em cima da cabeça, num carrapito que, ao longo da aula, ia descendo suavemente até que o elástico se soltava e a cabeleira se espalhava pelas costas. Era a sua figura pequena e altiva, a tranquilidade da sua posição de alfaiate, a sua natureza.

Era a combinação disto tudo, a maneira como enfiava a camisa nos leggings ao fazer a vela, esse gesto pudico da mão, a maneira como esticava os dedos curtos dos pés e os espetava no tapete, como se fosse o pezinho de uma osga. Era como se algo que normalmente está separado, algo que não se consegue juntar por maior que seja o esforço que se faça, de repente encaixasse.

Esse cabelo…Cheirei-o pela primeira vez quando fizemos as duas um exercício. Muito gosta disso o pessoal do yoga, de fazer exercícios aos pares. Felizmente ela fazia esses exercícios quase sempre comigo, porque as outras alunas tinham medo da minha tendência para controlar e da minha rigidez irremediável e formavam logo pares entre elas pelo que eu ficava sozinha. Aí, mantinha-me o mais quieta possível enquanto ela puxava os meus ombros para trás, empurrava as minhas vértebras para baixo ou apoiava a minha nuca e debitava a sua sabedoria de yoga. Está tudo ligado, tendões e pele, músculos e ossos, se algo na sua postura muda, muda tudo. Entregava-me completamente ao cheiro desse cabelo, cheiro de madeira fumegante, um cheiro que me enlouquecia, imaginava que lhe tirava o elástico e que passava a mão nessa cortina teatral, enfiando os meus dedos por entre os seus cabelos.

No inverno encontrei-a na rua, surpreendida por vê-la vestida sem ser com roupa de yoga, por essa nova combinação com a cor da sua pele e dos olhos, uma combinação que não era menos harmoniosa. Descobrimos que morávamos no mesmo bairro. Enquanto ela contava como tinha aterrado aqui, eu olhava para o seu lenço ocre e imaginava-a deitada no chão e eu a cruzar as pontas do lenço debaixo das suas omoplatas e a levantá-la, até que o tecido se estendesse e eu lhe esticasse a coluna vertebral, devagar, vértebra por vértebra, exatamente da mesma maneira que ela tinha feito comigo com uma corda, na aula da semana anterior. Não sei por que esse gesto me comoveu tanto. Esse puxar. Respirar e deixar ir, dizia ela enquanto fazia força. Ao reter a respiração, o corpo entra em pânico. Continuar a respirar significa que está tudo bem e o corpo se adapta.

Passada uma semana ela mandou-nos atar as cordas umas às outras e passá- las pelos anéis de metal na parede. Depois enredávamo-nos naquelas teias como se estivéssemos prisioneiras. Pura rendição, esse respirar de cabeça para baixo, uma forma de submissão. Depois do exercício ela baixava as luzes do teto e mandava-nos descansar sobre os tapetes. Eu espreitava por entre as pestanas. A luz amarela, o som da chuva a bater nas janelas, esse cabelo apanhado em cima da cabeça, tudo se ordenava à volta do seu perfil, forte e taciturno. Sentia os fluidos descer pelo meu corpo e pensava na casa onde tinha crescido, nos dias luminosos e alegres quando era criança. Pensava na minha família nessa casa, a percorrer os quartos que eram menos pequenos, menos escuros do que me parecem agora. Quando é que tudo isso mudou de geração? Desde quando é que essas pessoas têm rugas e os móveis parecem cheios de pó? O pé dela com os dedos esticados ao lado da minha cabeça e a sua voz; a primeira causa do sofrimento; não há certezas, tudo se altera.

Dois meses mais tarde surgiu a pandemia e o mundo alterou-se efetivamente. O estúdio de yoga fechou e ela desapareceu da minha vida. Mas não foi um verdadeiro desaparecimento. Prefiro encará-lo como uma alteração. Tal como uma chave não desaparece, mas passa para outro lugar, tal como os nossos pais morrem e nós descobrimos, anos mais tarde, os rastos que deixaram no nosso pensamento. Ou como uma nuvem muda de composição. Mas, se ela não desapareceu, onde é que está?

Começo por andar à procura dela no bairro. Passeio nas ruas vazias, ao longo dos expositores vazios das lojas fechadas, dos cafés escuros com os bancos do bar arrumados em cima do balcão e pergunto-me o que ela estará a fazer. A praça onde antes havia mercado todas as manhãs está deserta sob o sol. Cacos de vidro estalam debaixo das solas dos meus sapatos. Passo pelo cruzamento onde nos tínhamos encontrado e dobro a esquina, presumo que ela mora algures por aqui e olho à volta. Plantas à janela, lombadas de livros descoloridas, cheira-me a sopa e a água da louça. Um ninho de saudade compõe-se no meu estômago.

A caminho de casa passo por uma livraria e o meu olhar fixa-se num livro de bolso na vitrina da porta. “Impermanence is good news” é o título. Um sabor estranho aparece-me na boca. Algo de indefinível parece estar a deslocar-se no meu corpo. Paro. Penso: continua a respirar, o corpo adapta-se. A sensação desaparece e eu continuo o passeio.

Pergunto-me se não terei começado novamente a tentar controlar tudo. Só que isto não é uma busca neurótica, é antes uma expectativa, um desejo difuso.
Comecei a mexer-me mais livremente e é evidente que a nuca me dói menos. Às vezes esqueço-me da dor quando estou a comer curvada ou me debruço para apanhar algo do chão. Sinto-me estranhamente descuidada nestes dias – será por falta de contacto social? Entorno o café na camisola em vez de o levar à boca e tenho vontade de vestir roupa mais solta, calças menos apertadas.
Sandálias em vez dos meus eternos sapatos de atacadores. Ainda por cima olho à volta, nunca olhei tanto à minha volta ao passear, eu que antigamente me deslocava decididamente de um ponto para o outro. Olho para cabos elétricos estendidos por cima das ruas, para uma planta trepadeira na fachada duma casa senhorial e penso nas cordas no estúdio de yoga. Imagino como a minha mão se perde no cabelo dela, se fecha num punho na doce abundância e puxa a cabeça dela para mim.

A primavera começou agora a sério e saio pela primeira vez sem casaco. Paira um ar grosso e saturado entre os edifícios, já não estou habituada a esta diluição das fronteiras entre o fora e o dentro. A minha dor na nuca desapareceu completamente e estico os braços para trás, desfrutando esse movimento, essa respiração de peito aberto. A procura dela tornou-se de tal maneira parte integral dos meus passeios que o faço sem pensar, como um hábito cujo objetivo se esqueceu, ou como um animal que segue o seu caminho instintivamente.

– Está a seguir rastos? – pergunta um rapaz, quando atravesso um beco onde suspeito que ela mora. Sobressalto-me.

– Não – digo, e depois, concentrando os meus pensamentos: – Procuro uma
senhora que mora aqui.

Ele está ao pé de uma porta aberta, a desdobrar caixas de cartão. Mais à frente um gato arrasta-se entre os carros silenciosos.

– Como é que ela é?

Acho difícil responder, é difícil lembrar as caras porque se alteram constantemente.

– Pequena – acabo por dizer. – Cabelo comprido, escuro. Fisionomia oriental.

– Tem uma foto?

– Não.

Olhamo-nos nos olhos. Ele empilha as caixas contra a parede e prepara-se para entrar na casa.

– Tive aulas com ela – acrescento, como se isso explicasse tudo.
Nessa noite penso novamente nela quando estou na cama. É cada vez mais difícil visualizá-la, mas o difuso não cria distância, pelo contrário, ela parece mais perto do que nunca. Sinto o orgasmo como um abrir de guelras.

No dia seguinte vagueio em direção ao parque e aí acontece algo estranho. Sento-me na relva debaixo de uma árvore e, sem pensar, dobro as pernas debaixo de mim. Nunca fiz isso antes. As minhas articulações costumam doer quando me sento na posição de alfaiate, mas agora estou aqui tranquilamente de joelhos, a olhar à volta, com os ramos pesados do castanheiro a abanar por cima da minha cabeça. Levanto-me e dou a volta à árvore. Ando de uma maneira diferente? Olho para os meus dedos nas sandálias e sinto novamente essa deslocação ténue no meu corpo. Mexo o pé, afasto os dedos uns dos outros, são mesmo meus, no entanto alguma coisa mudou, não me lembro de ter visto estas sandálias antes. Ponho o lenço à volta dos ombros e saio do parque, levantando os pés e refletindo.

De repente deixo de saber do que estou à procura. Respiro o ar da primavera e sinto-me revigorada, mais descontraída do que me senti desde há muito tempo. Tudo o que encontro no meu caminho tem uma surpresa agradável para me oferecer, a erva descuidada entre as pedras da rua, o tinir dos talheres nos pratos que se ouve atrás de uma janela aberta. A respiração como um fio através do meu nariz. Vagueando, descubro um beco onde nunca tinha entrado antes e vejo a torre da igreja de um ângulo desconhecido. Entro numa padaria e a vendedora saúda-me como se fosse uma conhecida chegada. Não me lembro de a ter visto antes. Não falo com quase ninguém desde o início da pandemia e comove-me a sua familiaridade.

Esta manhã levanto-me tarde e sento-me um instante entre as plantas e os livros no parapeito da janela. Olho para o sol nas paredes caiadas do outro lado da rua, para um lençol pendurado numa janela a secar, flutuando ao vento. Estendo depois o meu tapete e para acordar ponho-me em adho mukha svanasana.

Quando abro a caixa do correio, o vizinho sai de casa.

– A semana passada passou por aqui alguém que perguntou por ti.

– Quem foi?

Ele encolhe os ombros.

– Uma mulher, muito magra, de cabelo curto. Disse que tinha tido aulas contigo.

– Que estranho – respondo e por um momento sinto-me perder o equilíbrio.

Como se tivessem puxado uma corda. Afasto o cabelo da cara, tiro o elástico que está à volta do meu pulso e ato o cabelo em cima da cabeça. A seguir, enfio a máscara por cima do nariz e saio para a rua, as solas das sandálias a estalar nas pedras.


More by Lut Caenen

Uma vida a meio

Casablanca, 1954 Ela filtra o ruído das crianças a brincar lá fora e todos os dias guarda alguns sons aos quais se agarra obstinadamente. Colhe os poucos sons que penetram através das paredes. Passados alguns meses já conhece os vizinhos todos, embora nunca saia do quarto. Sabe que estão sempre a aparecer credores em casa dos vizinhos do lado, mas não adianta porque o homem não quer pagar. «Nem que me arranquem primeiro os órgãos do corpo e me matem depois» é o que o ouve dizer à mulher depois de os credores saírem. Quando ouve estas coisas tem a sensação de ser um elo na história e nos segre...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

O retrato

A casa tinha uma porta de carvalho e uma fachada imponente. Não havia nomes na campainha. David demorou um pouco a descer e eu fui olhando a rua à minha volta. Era calma e branca, não se comparava com o bairro ao pé do canal onde a Sam e eu morávamos. Eu oscilava entre o devaneio e a irritação, como me acontecia muitas vezes quando era confrontada com coisas que não me podia permitir. Ele abriu a porta e sorriu-me. Tinha a camisa aberta. Eu subi as escadas atrás dele e fui novamente envolvida pelo cheiro dele: nozes e terebintina. O atelier estava tão desarrumado como da outra vez, mas havia...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

Não quero ser um cão

Escrevo no teclado: «PÔR FIM A UM DESGOSTO DE AMOR». Vejo histórias de pessoas mas não quero histórias. Quero soluções, não quero compaixão. Isto tem de parar agora. «TRANSFORMAÇÃO», escrevo. O Google diz que há transformação na matemática e na genética. Opto pela segunda e com isto faço a minha primeira escolha. Estou farta deste corpo que já foi beijado por demasiadas pessoas, que talvez até esteja estragado. Tenho sido muito imprudente com ele, demasiado descomprometida, tem de acabar, tem de ser outro e melhor. Transformação genética. «Cura com sumos» aparece no ecrã. «Transforma-te numa v...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Em casa

O moinho, o caminho para o rio, o poço, os cavalos, as vacas e o trigo. Os baldes rachados cheios de tomates vermelho vivos, os boiões com as tampas bem apertadas cheios de legumes em pickles para o inverno. O estreito rio Severski Don, que alinha os campos todos, que empurra a Rússia contra a Ucrânia, que mantém o mapa unido, da mesma maneira que o meu bisavô Nikolaj cose os casacos com agulha e linha. O vento nas velas do moinho, as meninas do komsomol na praça central da aldeia. Dançam. De braço dado mantêm-se em equilíbrio inclinando o corpo para o lado e elevam-se do chão exatamente com a...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Linguado

Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem. No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar. Ninguém dirá «72 segundos!» É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios. Estou sentada no fundo da piscina e olho para ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker

Todas as pessoas se tornam irmãos

Quando vi o Andrei afastar-se, comecei a gostar dele. Vi a sua mochila preta a abarrotar que ele transportava como um escudo sobre as costas. A mochila estava tão cheia que se percebia logo que ele não estava a caminho de nada, que não ia a lado nenhum. Se tivesse ido para as montanhas assim, a mochila ia desequilibrá-lo, podia puxá-lo para trás, e lançá-lo no abismo. Os fechos éclair da mochila estavam velhos e parecia que iam rebentar a qualquer momento. Eu imaginava que a mochila ia abrir-se de repente, como um airbag, uma almofada de ar que começava a crescer, cada vez maior, e que se tran...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Yelena Schmitz

A evolução de um dente do siso

Mais 47 noites O assistente do dentista tira o gancho da minha boca. – Está a ver isto? – pergunta quase com orgulho. O gancho está coberto com uma camada de saliva acinzentada. – Isto saiu da bolsa. É uma palavra estranha para designar um buraco entre a gengiva e um dente do siso. Uma bolsa parece uma coisa grande, onde se pode guardar chaves, e talvez até gel para as mãos ou um telemóvel. Tudo o que está dentro da minha bolsa são restos de comida triturados com alguns meses. O dentista aparece pouco depois e aponta para o meu maxilar no ecrã do computador. O dente do siso inferior do ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Está tudo bem

Ela leva a sua máquina de café consigo. Ela não sabe quem é. No entanto, sabe, sim, que é uma mulher com uma máquina de café expresso da marca De’Longhi Magnifica S ECAM20.110.B totalmente automática. Preta e cinzenta. Porque já não sabe mais nada, todos os pormenores são importantes. De manhã, assim que a máquina começa a moer os grãos de café com o seu ruído infernal, ela fica logo acordada – e os vizinhos também. Comprou a máquina em segunda mão no Coolblue e, durante quatro dias, passou as manhãs à espera dela, junto à janela. Ao mesmo tempo que fazia no site, de cinco em cinco minutos,...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Calcário

Ora, está visto que leva muito tempo para uma cabeça de chuveiro ficar entupida com calcário. Agora que me balanço aqui, com o tubo do chuveiro enrolado à volta do pescoço, meio pendurado no corredor, meio pendurado por cima das escadas, penso: se todos os meus amigos tivessem visto a casa de banho, tinham percebido logo. Se todos tivessem subido uma única vez ao andar de cima, como fez a Ema naquela tarde, teriam olhado para a cabeça de chuveiro, teriam aberto e fechado a torneira, teriam visto a divisória de vidro calcificada do duche, teriam reparado nos pelos da barba feita à pressa no lav...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Empalhar um corpo

Debaixo da nossa pele há mundos inteiros. Se é que se pode confiar nas ilustrações. Às vezes não tenho a certeza. Agarro na minha clavícula. Fica toda espetada para fora quando encolho os ombros. Faço isso muitas vezes. A clavícula é um ossinho sólido mas fino. Podia parti-lo. Talvez não com as mãos nuas, mas se lhe desse uma pancada com um objeto pesado, com aquela estátua de pedra maciça, por exemplo... Aí era de certeza. Não é preciso muito para acabar com tudo. Basta engasgarmo-nos uma vez e já está. Para onde é que vão os bocados de comida que entram no canal errado? Além das amígdalas pe...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker
More in PT

Os Meninos Escritores

Quase tudo o que aconteceu nesse dia passa-se aqui. Estou com o indicador  apontado à cabeça. Muitos anos depois, enquanto levo o meu filho a  descobrir o gelo, ainda recordo todos os acontecimentos daquele único dia  como «o fuzilamento».  Ninguém morreu. As pessoas eram perigosas, especialmente as  crianças pequenas, penduradas nas árvores. Os pés a balançar — e era da  língua no meio da boca que viriam os piores crimes.   Ouvir dói, caminhar é um truque. Caminhemos.   Mesmo os pequenos ditadores envelhecem. Os filhos coabitam a  terra com os pais, há milhões, talvez milhares de anos. Imagin...
Written in PT by José Gardeazabal

A Aguardente que mata

DE LIVRO DE CONTOS: A AGUARDENTE QUE MATA DISCLAIMER: Os seguintes excertos são de um livro de contos composto por seis ciclos (Uma notícia incomum, As aves não sobrevoam os subúrbios, Os esboços do minibus, A aguardente que mata, Pela boca, Fizeram bem em bombardear-nos). Cada um dos ciclos contém cinco contos. Os contos condensam os protagonistas e os acontecimentos, e entrelaçam-se entre si no espaço.  CICLO AS AVES NÃO SOBREVOAM OS SUBÚRBIOS     As Casas da cultura nas terras pequenas foram todas convertidas em lojas. Em frente delas há sempre três ou quatro homens de chinelos abibas d...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Ana Marija Grbic

Francamente querida, tanto me faz

O Marek faz-me cair na cama e pelo seu rosto passa-se algo que combinado com o seu aperto, me faz perder completamente a orientação, como se a nossa cama fosse uma avalanche em que ele me afundou e eu esquecia onde é em cima e onde é em baixo. Tudo isto dura apenas um segundo, esse aperto e essa sua expressão, no momento seguinte saca-me da avalanche, e ainda que eu permaneça na posição horizontal, já me é perfeitamente claro onde é em cima e onde é em baixo. E só agora atinjo, mas mesmo assim apenas em contornos, agora me apercebo dessa ideia, que dispara pela minha cabeça como se alguém acen...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Lucie Faulerová

PISK

Dia 28 de novembro de 2020, um mês depois do dia em que o politizado Tribunal Constitucional tornou o aborto ilegal na Polónia. Magda Dropek, uma das organizadoras dos protestos feministas em Cracóvia, escreveu no Facebook: “Durante estes anos em que apoiei as ações nas ruas tive a certeza de uma coisa: que não consigo gritar e clamar, que sou demasiado caótica para falar de maneira rápida e lógica, por isso, sempre me senti bem em transferir o que penso para o papel ou para o ecrã, escrever, comunicar sem usar a voz. Ainda por cima, a minha voz, detesto-a. Nas últimas semanas gritei como nun...
Translated from PL to PT by Katarzyna Ulma Lechner
Written in PL by Aleksandra Lipczak

Notas sobre a vida de Frances Donnel

Prólogo Em 1945, Frances Donnell, escritora e conhecida criadora de aves, nasceu nos Estados Unidos. Em 1983, fingiu morrer de lúpus, doença que a afligia desde a sua juventude. Meses depois da sua tentativa, descobriu-se que tinha sido tudo um boato. Após uma pequena polémica, a que chegaremos no momento oportuno, Frances permaneceu no anonimato durante várias décadas. Já no século XXI, chegou a Espanha com a dureza da doença às costas, pois aquela não tinha deixado de crescer dentro de si. Costumava dizer que tinha abandonado o seu país no momento em que se tornara demasiado velha para sent...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Como pode medir-se o tempo?

Como pode medir-se o tempo? É possível compreender verdadeiramente esta categoria do pensamento e da realidade, que nos escapa continuamente no preciso momento em que procuramos compreendê-la? No nosso mundo, no qual relógios e calendários estão acessíveis em poucos segundos a quem quer que seja, é difícil imaginar o que significaria viver sem saber o momento, a hora, o dia em que se estava. Ainda nos tempos dos nossos avós, apenas os mais ricos e os mais instruídos podiam ler um jornal e ter um relógio de bolso: para aqueles que viviam e trabalhavam no campo, a perceção do passar do tempo era...
Translated from IT to PT by Ana Cristino
Written in IT by Fabio Guidetti