View Colofon
Original text "Het portret" written in NL by Hannah Roels,
Other translations
Mentor

Arie Pos

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

O retrato

Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels


A casa tinha uma porta de carvalho e uma fachada imponente. Não havia nomes na campainha. David demorou um pouco a descer e eu fui olhando a rua à minha volta. Era calma e branca, não se comparava com o bairro ao pé do canal onde a Sam e eu morávamos. Eu oscilava entre o devaneio e a irritação, como me acontecia muitas vezes quando era confrontada com coisas que não me podia permitir.

Ele abriu a porta e sorriu-me. Tinha a camisa aberta. Eu subi as escadas atrás dele e fui novamente envolvida pelo cheiro dele: nozes e terebintina. O atelier estava tão desarrumado como da outra vez, mas havia alguma coisa que lhe dava um ar menos sombrio, embora não soubesse se era provocado pela luz do dia ou pelo facto de quase todas as pinturas estarem agora viradas para a parede. Só se via uma pequena paisagem florestal, ao lado das garrafas junto da janela.

David caminhava pelo espaço, concentrado, como se eu não estivesse ali. Deu a volta a um cadeirão antigo e com um gesto de aprovação bateu no assento, um som oco de molas lá dentro. Arrastou um cavalete até ao cadeirão, puxou uma mesinha com pincéis e lápis e sentou-se num banco alto. O cavalete estava tão salpicado com tinta que parecia coberto de caca de pássaro. Tirou uns pioneses de uma tampinha e espetou umas folhas de papel na madeira. Trauteou qualquer coisa, contrariado, levantou-se, virou o cadeirão, colocou um espelho ao lado e sentou-se. Parecia que estava a preparar uma cena de teatro. Tinha as mangas arregaçadas e eu via os seus braços e pulsos bem formados.

– Estás com frio?

Eu ainda estava com o casaco posto e a mala ao ombro, sem consciência alguma da temperatura que estava.

– Pus o aquecimento no máximo.

Depois desta observação ocupou-se com os lápis e os pauzinhos de carvão. Não era antipático mas estava ausente e eu não podia adiar mais: esperava-se alguma coisa de mim.

– Tens um pouco de água que me possas dar?

Ele foi buscar uma garrafa, encheu um copo e voltou a sentar-se. Eu não toquei no copo, ofendida, com a sensação de que ia ter de enfrentar tudo sozinha.

– Já está – disse ele, – estou pronto.

Apontou para um biombo no fundo do atelier. Tinha um roupão pendurado em cima. Senti-me sem forças. Inspira, expira. Fui para trás do biombo. Desapertei os sapatos, tirei as calças, a camisola e a roupa interior e coloquei tudo num montinho. Vesti o roupão demasiado grande e fui-me sentar no cadeirão enquanto ele continuava a afiar os lápis. Tudo isto tinha algo de caseiro, mas também um perfume de perigo e debaixo das axilas o tecido ficou molhado de transpiração.

David apontou para o roupão.

– Queres que fique de pé? – perguntei.

– Sim, talvez, para começar.

Os meus movimentos pareciam ter ganho vida própria. Levantei-me às sacudidelas.

– Ficar só de pé é bom.

– David... – comecei.

Desatei a transpirar de tal maneira que as plantas dos pés se colavam ao chão de madeira. Ele estava sentado a dois metros de mim, no seu banco de pintor, com o cavalete entre nós. Pela primeira vez toda a sua atenção se dirigiu para mim. Quando disse o nome dele, o seu olhar tornou-se ríspido e eu soube que tínhamos ido longe demais.

Com os dedos frios abri o roupão e coloquei-o o mais descontraidamente possível em cima do cadeirão. Um vazio quente em cima da pele. A minha caixa torácica subia e descia e por um instante eu não tinha peso. Não podia parar nessa nudez, só podia refugiar-me no olhar dele que percorria o meu corpo de alto a baixo. Não acontecia nada. Uma gota de transpiração correu pelas nádegas abaixo. Estava à espera que a minha angústia fosse crescendo, mas não aconteceu, desceu até ao meio do tórax onde se instalou como água estagnada.

Ele pegou nuns paus de carvão e começou a esboçar com gestos largos e lentos. O ruído do esfregar do carvão no papel. O braço dele subia e descia em cima do papel que estava virado para mim. Tinha um ar agitado, as narinas muito abertas.

– Fazes o favor de não me olhar tão fixamente?

O meu olhar desceu até ao chão.

– Podes voltar a sentar-te no cadeirão.

Avancei com passos colantes para o maple. Ele soltou a folha onde tinha desenhado e a sua mão começou imediatamente a fazer gestos redondos na folha de baixo.

Estiquei as pernas por cima de um dos braços do cadeirão e tentei dominar a respiração. O veludo do cadeirão estava gasto em vários sítios e mordia-me a pele. Enterrei-me um pouco mais no cadeirão. Os meus olhos examinavam o espaço à procura de um ponto de apoio, alguma coisa para onde pudesse deslocar a minha atenção para deixar de sentir o olhar de David.

As garrafas à frente da janela lançavam uma luz verde no chão de madeira. Não sei o que despertou a recordação, essa cor ou talvez o colchão que estava deitado no chão um pouco mais longe? Pensei de repente na cama dos meus pais onde brincava muitas vezes em criança. O velho colchão de molas, os lençóis e as almofadas magras. O cheiro familiar mas fascinante, os objetos na mesa-de-cabeceira, tampões de cera gordurosos para os ouvidos, fósforos, um frasco de óleo de massagem coberto de pó. A cama de duas pessoas adultas. De onde é que isto vinha? Era uma imagem antiga, não sabia que ainda mexia dentro do meu corpo.

Afastei a recordação e foquei-me na paisagem florestal ao lado das garrafas. Três troncos de árvore. O tronco mais afastado percorria o centro da tela e os outros dois estavam do lado esquerdo, com a luz por trás. Faias, pensei, eram lisas e musculadas e as folhas eram dum verde quase transparente. Centrei a minha atenção na imagem começando por um canto e fui subindo pela casca, com a sensação de estar em terreno familiar. Mas não funcionava, eu não conseguia entrar. A ilusão da imagem era perfeita e as árvores espantosamente familiares, mas pareciam estar muito longe. Percebi que estavam majestosamente sós. Era devido à moldura, ou nunca antes me tinha apercebido disso? Tentava lembrar-me dos bocados de floresta lá de casa, das faias na orla do bosque junto à nossa rua. Foi assim que ele viu isso, pensei e fui outra vez puxada para o ruído do esfregar ao meu lado.

Quando David se levantou e se dirigiu para o cadeirão, estava quase completamente escuro. Não mexi um dedo. Ele tirou o roupão do apoio para os braços e cobriu-me com o tecido. Era um gesto paternal mas mais do que isso, tive a sensação que ele queria que eu estivesse coberta. Havia cinzento nos pelos dos seus antebraços e eu cheirava a sua proximidade.

– Peço desculpa – disse e enfiei as mãos pelas mangas, – estava tão nervosa, nem sequer saí do cadeirão.

– Não faz mal. É a primeira vez.

Ele acendeu a luz, levou à boca a garrafa com água e bebeu grandes golos.

– Mas isto adianta-te alguma coisa? – perguntei.

– Sim. E a ti?

Não sabia o que responder. Senti-me desiludida e fui vestir-me para trás do biombo. Depois passei pelo cavalete. Queria ver os esboços, mas já não estava lá nada. Só os pioneses ainda estavam na madeira.

– Queres cá voltar no domingo que vem?

Ele desceu as escadas atrás de mim.

– Não sei – disse eu junto à porta da rua, – penso que isto não é para mim. Por que é que não pedes à Sam?

– Vem na próxima semana.

Tinha um envelope na mão estendida.

– Vejo-te no domingo – disse eu.

Sem aceitar o dinheiro, pus-me a andar. Andava depressa, rente às casas e apertava as chaves entre os dedos da minha mão saudável.

Algo da imagem florestal tinha ficado. Em casa enrolei-me na cama e em pensamentos saí da nossa rua, com o meu pai, pelo caminho asfaltado que levava ao bosque. A interioridade. Levava sempre algum tempo antes que os sons surgissem, o sussurro e o estremecer, nos arbustos e mais acima, nas árvores. O caminho serpenteava à nossa frente, aqui e ali conseguia distinguir-lhe um pedaço através dos fetos e dos arbustos. O meu pai caminhava com decisão, os seus passos vibravam na terra mole. Era reconfortante andar atrás dele e ver os seus movimentos. Nos primeiros dias depois da morte da minha mãe ele não tinha saído de casa. Eu tinha medo da tristeza dele e entrincheirava-me no meu quarto. Quando tinha fome, ia à socapa à cozinha e arrancava bocados do pão – era demasiado pequena para utilizar a máquina elétrica de cortar o pão – enquanto ele estava à mesa curvado como uma folha seca. Na segunda noite fui ao pé dele para lhe dar um beijo, mas a sua cara tinha-se transformado quase num espetro.

– Pai – disse-lhe, mas ele nem me olhou e eu subi as escadas e embalei-me a chorar.
Quando, no dia seguinte, ele tirou a bengala do vaso junto à porta onde se guardavam os chapéus-de-chuva e anunciou que ia dar un petit tour, entrei em pânico.

– Posso ir contigo?

Quis barrar-lhe a porta. Pensei que ele não voltaria se eu o deixasse sair sozinho. Mas surgiu na cara dele uma gratidão hesitante e, lado a lado, entrámos pelo bosque adentro.

Nesses passeios eu mexia-me o mais silenciosamente possível. Para não perturbar a vida da floresta, os animais e também os seres mágicos cuja presença adivinhava, mas nos quais não me atrevia a pensar com medo de lhes chamar a atenção. Procurava observar e guardar dentro de mim o máximo de coisas que podia, para nos meus sonhos acordados poder voltar de novo a passear ao longo desse caminho, independentemente do que corresse mal no mundo exterior. Na minha imaginação passearia muito devagar, um passo, olhar, um passo, escutar. Iria soltar-me do chão do bosque, movimentar-me através da abóbada de verdura e espreitar por cima do campo enorme e verde dos cumes. E à noite na minha cama o pensamento: como estaria nesse momento o bosque de faias, o que é que estaria a mexer entre os troncos das árvores e nos caminhos?

More by Lut Caenen

Uma vida a meio

Casablanca, 1954 Ela filtra o ruído das crianças a brincar lá fora e todos os dias guarda alguns sons aos quais se agarra obstinadamente. Colhe os poucos sons que penetram através das paredes. Passados alguns meses já conhece os vizinhos todos, embora nunca saia do quarto. Sabe que estão sempre a aparecer credores em casa dos vizinhos do lado, mas não adianta porque o homem não quer pagar. «Nem que me arranquem primeiro os órgãos do corpo e me matem depois» é o que o ouve dizer à mulher depois de os credores saírem. Quando ouve estas coisas tem a sensação de ser um elo na história e nos segre...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Não quero ser um cão

Escrevo no teclado: «PÔR FIM A UM DESGOSTO DE AMOR». Vejo histórias de pessoas mas não quero histórias. Quero soluções, não quero compaixão. Isto tem de parar agora. «TRANSFORMAÇÃO», escrevo. O Google diz que há transformação na matemática e na genética. Opto pela segunda e com isto faço a minha primeira escolha. Estou farta deste corpo que já foi beijado por demasiadas pessoas, que talvez até esteja estragado. Tenho sido muito imprudente com ele, demasiado descomprometida, tem de acabar, tem de ser outro e melhor. Transformação genética. «Cura com sumos» aparece no ecrã. «Transforma-te numa v...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Em casa

O moinho, o caminho para o rio, o poço, os cavalos, as vacas e o trigo. Os baldes rachados cheios de tomates vermelho vivos, os boiões com as tampas bem apertadas cheios de legumes em pickles para o inverno. O estreito rio Severski Don, que alinha os campos todos, que empurra a Rússia contra a Ucrânia, que mantém o mapa unido, da mesma maneira que o meu bisavô Nikolaj cose os casacos com agulha e linha. O vento nas velas do moinho, as meninas do komsomol na praça central da aldeia. Dançam. De braço dado mantêm-se em equilíbrio inclinando o corpo para o lado e elevam-se do chão exatamente com a...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Linguado

Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem. No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar. Ninguém dirá «72 segundos!» É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios. Estou sentada no fundo da piscina e olho para ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker

Fios

A procura não começa de forma consciente. Sinto-me ligada a ela de uma forma perturbadora, inexplicável, e o seu desaparecimento deixa-me sozinha frente às minhas interrogações. Ao acordar pergunto-me onde dormirá e como vive e continuo a pensar nela, masturbando-me doce e suavemente entre os lençóis enquanto olho para as nuvens pela janela basculante. Quando passo pelas barracas de fruta no nosso bairro, vou tocando nas laranjas com as pontas dos dedos, até que encontro uma que me lembra a sua pele, uma com os poros perfeitos. Aterrei nas suas aulas de yoga devido às minhas constantes dores ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

Todas as pessoas se tornam irmãos

Quando vi o Andrei afastar-se, comecei a gostar dele. Vi a sua mochila preta a abarrotar que ele transportava como um escudo sobre as costas. A mochila estava tão cheia que se percebia logo que ele não estava a caminho de nada, que não ia a lado nenhum. Se tivesse ido para as montanhas assim, a mochila ia desequilibrá-lo, podia puxá-lo para trás, e lançá-lo no abismo. Os fechos éclair da mochila estavam velhos e parecia que iam rebentar a qualquer momento. Eu imaginava que a mochila ia abrir-se de repente, como um airbag, uma almofada de ar que começava a crescer, cada vez maior, e que se tran...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Yelena Schmitz

A evolução de um dente do siso

Mais 47 noites O assistente do dentista tira o gancho da minha boca. – Está a ver isto? – pergunta quase com orgulho. O gancho está coberto com uma camada de saliva acinzentada. – Isto saiu da bolsa. É uma palavra estranha para designar um buraco entre a gengiva e um dente do siso. Uma bolsa parece uma coisa grande, onde se pode guardar chaves, e talvez até gel para as mãos ou um telemóvel. Tudo o que está dentro da minha bolsa são restos de comida triturados com alguns meses. O dentista aparece pouco depois e aponta para o meu maxilar no ecrã do computador. O dente do siso inferior do ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Está tudo bem

Ela leva a sua máquina de café consigo. Ela não sabe quem é. No entanto, sabe, sim, que é uma mulher com uma máquina de café expresso da marca De’Longhi Magnifica S ECAM20.110.B totalmente automática. Preta e cinzenta. Porque já não sabe mais nada, todos os pormenores são importantes. De manhã, assim que a máquina começa a moer os grãos de café com o seu ruído infernal, ela fica logo acordada – e os vizinhos também. Comprou a máquina em segunda mão no Coolblue e, durante quatro dias, passou as manhãs à espera dela, junto à janela. Ao mesmo tempo que fazia no site, de cinco em cinco minutos,...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Calcário

Ora, está visto que leva muito tempo para uma cabeça de chuveiro ficar entupida com calcário. Agora que me balanço aqui, com o tubo do chuveiro enrolado à volta do pescoço, meio pendurado no corredor, meio pendurado por cima das escadas, penso: se todos os meus amigos tivessem visto a casa de banho, tinham percebido logo. Se todos tivessem subido uma única vez ao andar de cima, como fez a Ema naquela tarde, teriam olhado para a cabeça de chuveiro, teriam aberto e fechado a torneira, teriam visto a divisória de vidro calcificada do duche, teriam reparado nos pelos da barba feita à pressa no lav...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Empalhar um corpo

Debaixo da nossa pele há mundos inteiros. Se é que se pode confiar nas ilustrações. Às vezes não tenho a certeza. Agarro na minha clavícula. Fica toda espetada para fora quando encolho os ombros. Faço isso muitas vezes. A clavícula é um ossinho sólido mas fino. Podia parti-lo. Talvez não com as mãos nuas, mas se lhe desse uma pancada com um objeto pesado, com aquela estátua de pedra maciça, por exemplo... Aí era de certeza. Não é preciso muito para acabar com tudo. Basta engasgarmo-nos uma vez e já está. Para onde é que vão os bocados de comida que entram no canal errado? Além das amígdalas pe...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker
More in PT

Com as aves, partilho o céu

      Às vezes, torna-se insuportável. Manducam tão alto que me despertaram. E não só, também discutem quem terá o bocado mais saboroso e não me deixam adormecer. Tudo se ouve, embora haja vidros duplos nas janelas e as esquadrias isolem bem. Um quer sementes de abóbora, outro de linho, porque estalam tão entusiasticamente, os mais pequeninos querem, sôfregos, as migalhas de pão. As fêmeas não querem, de maneira nenhuma, o bolo de sebo. Quem diria que os tordos-comuns, os pintarroxos, os chapins-azuis e os verdilhões não queiram encher o seu aparelho digestivo com absolutamente nada do que lhe...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Agata Tomažič

Dicionário do Recluso

O Dicionário do Recluso encerra as vozes e as histórias de homens que se encontram detidos na cadeia de Turim, Estabelecimento Prisional Lorusso e Cutugno, Ala V do Pavilhão C, destinada aos “presos protegidos”. Nasce de um laboratório de escrita realizado no interior da prisão durante dois anos. Todos nós sabemos o que querem dizer “casa”, “inverno”, “amor”, e o seu significado é absoluto. Mas na cadeia o significado das palavras muda, e essa mudança nasce do espaço: lá dentro só existe o dentro, e as palavras tornam-se pré-históricas. Quer isto dizer que é como se estivessem paradas num tem...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Sara Micello

Sónia levanta a mão

Por estes lados, as pessoas são muito desconfiadas. Mas não se sabe se noutros sítios a iriam receber de braços abertos. As pessoas do lado dele. Os do outro grupo. Não conhece, no círculo dela, casais das gerações anteriores, em que os dois sejam amigos, e não inimigos, mesmo que fiquem juntos até à velhice. Algures no mundo talvez existam os que ainda ficam amigos a vida toda e para além dela, mas são poucos, extremamente sortudos e bem escondidos aos olhos dos outros, de tal forma, que, olhando à tua volta, tu, jovem, possas estar quase convencido de que quem está ao teu lado chegará a dest...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Lavinia Braniște

Não quero ser um cão

Escrevo no teclado: «PÔR FIM A UM DESGOSTO DE AMOR». Vejo histórias de pessoas mas não quero histórias. Quero soluções, não quero compaixão. Isto tem de parar agora. «TRANSFORMAÇÃO», escrevo. O Google diz que há transformação na matemática e na genética. Opto pela segunda e com isto faço a minha primeira escolha. Estou farta deste corpo que já foi beijado por demasiadas pessoas, que talvez até esteja estragado. Tenho sido muito imprudente com ele, demasiado descomprometida, tem de acabar, tem de ser outro e melhor. Transformação genética. «Cura com sumos» aparece no ecrã. «Transforma-te numa v...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

Portasar Nenhum Instante

Lucas corre tão lesto ali que as novas imagens não chegam a substituir as  mais antigas em tempo útil. O vento sopra silenciosa e eficazmente, mínimas fricções. Os pomares estão rodeados pela floresta e nela, através  do procedimento do caminhar, Lucas deparou-se com uma tília muito alta,  folhas esbranquiçadas por trás, com um enorme buraco na base. Dentro havia areia seca e uma cama onde se pode dormir quando chove e uma taça.  Ali nunca lhe faltavam números para adicionar, multiplicar e dividir,  finalmente podia recuperar os números originais do resultado e fazer outra  coisa com eles como...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Cătălin Pavel

Manobra

É fim de janeiro, um sábado, um ano depois de teres deixado o vaporizador  de arroz em casa dela. Enches duas canecas de café e tiras as fatias de pão da  torradeira. O açucareiro está na penúltima prateleira do armário em cima  do fogão. Quando te esticas para lá chegar, o teu ombro faz um som  enjoativo. Ela levanta os olhos do telefone, que está pousado ao lado dos seus óculos, em cima da mesa de jantar. Pões o açucareiro em cima da mesa,  pedes licença e choras na casa de banho. Se expirares lentamente, quase não  se conseguem ouvir os soluços. Um eco, se tanto. Um segredo que partilhas  c...
Translated from NL to PT by Xénon Cruz
Written in NL by Simone Atangana Bekono