View Colofon
Translations
Mentor

João Paulo Cotrim

Proofread

Paulo Capinha

Published in edition #2 2019-2023

Esmeralda da depressão

Written in PT by Luis Brito

ESMERALDA


Velas, em vez de candeeiros. Baldes, em vez de bidés. Abortos acidentais, legais e com fartura.

Era a Idade Média e dava-se mais um parto caseiro. Feliz, nasceu luz e tratava-se da primeira menina com olhos azuis. A primeira vez, nascidos na terra, por debaixo do céu celeste, oculares tons do que está por cima, e não por baixo. O primeiro milagre da estética, os olhos castanhos e/ou pretos do reino nunca tinham visto nada assim.

A senhora veio à rua. Trazia hortaliças biológicas numa mão, o recém-nascido na outra. Queria chegar à Igreja para mostrar aquilo, talvez o padre soubesse o que queria dizer, talvez viesse escrito nos escritos, ou talvez o bispo, se o padre não soubesse. Antes de tudo as bênçãos e com elas a segurança de que não as queimavam vivas, nem à mãe nem à filha, que não eram bruxas nem putas, nem tinham culpa daquilo.

“Aquilo” podia ser obra do diabo. Nunca se sabe, porém, pensava a senhora no belo e no inocente. Na Idade das Trevas havia nesgas de bom senso como hoje, como sempre, nesgas.

Desnecessário foi chegar ao bispo, uma vez que o próprio padre recebeu e deu logo a bênção, para alívio da mamã aflita, porém, na condição de o acompanharem a ver o rei. O rei também recebeu e encomendou logo um banquete, para festejar o milagre.

Chegaram carnes de peru biológico, puré de batatas-doces biológicas, uvas biológicas, coisas que não havia naquele tempo. A mãe, esfomeada, boquiaberta e ainda mais aliviada, estava admirada com a imponência do castelo, lindo por dentro como por fora. E os nobres propuseram – como quem diz, impuseram - que a filha vivesse na corte. Propuseram – como quem diz, impuseram - chamar-lhe Esmeralda, e depois que a mãe não ficasse por lá, a criança que fosse entregue às amas, elas sabiam o que faziam.

A mãe podia visitar a miúda uma vez por mês, recebendo um saco de moedas sempre que lá fosse. Direitos são deveres, deveres são direitos e, com esse saco, sempre poderia alimentar os outros filhos biológicos, que iam nascendo ou morrendo, consoante os caprichos da lua.

Esmeralda foi largada no quarto escuro do palácio. Cientistas e conselheiros do convergiram e apressaram-se, garantindo que Esmeralda tinha de ser resguardada como uma pérola, longe dos maus olhares e sobretudo da luz, que seguramente ia queimar tais joias, aquelas lentes azuis, as primeiras de sempre, guardadas na pequenez facial de um bebé lindo.

Cortejos vieram dos quatro cantos do reino, para ver o azul. Assumiu-se que a Idade das Trevas ia terminar pois cortejos longos vinham ver o milagre, conhecer a nova filha real que, com o seu sangue azul, agora produzia olhos azuis e assim provava a pureza da linhagem, a elevação daquela nação, uma superioridade cavernosa perante os povos em redor.

A mensagem chegou longe, subindo montanhas, planando vales até aos reinos vizinhos, que se apressavam em comparecer, representados por diplomatas. Traziam-se presentes das Índias, elefantes e macacos biológicos de África, especiarias da China, sutiãs de lã, coisas que não havia naquele tempo. As ovelhas pareciam mais gordas, as planícies mais planas, as trevas mais azuis. Tantos foram os presentes, tantos os dons e tantas as prendas que o reino, já abastado, virou pornograficamente rico. Tornou-se império e hoje, na decadência, alguns dizem que é por causa dos olhos de Esmeralda que a bandeira daquele retângulo, nos tempos da monarquia, era azul e branca.

A menina dos olhos azuis já tinha 10 anos e era uma capital escondida. Quando o rei dava festas sempre a chamava, para que os embaixadores a vissem e admirassem tudo em redondilha e ela lá vinha, tirada do quarto escuro onde era protegida da luz da vida, vestida à pressa pelas amas, limpando as lágrimas de solidão e escravatura, ensinada a disfarçar.

“Tem olhos azuis porque o nosso sangue é azul”.

“Foi enviada por Deus para provar a pureza da linhagem nobre”.

“São as Esmeraldas do Império, mas e a mãe, onde está?” – perguntou alguém, depois guilhotinado por perguntar por alguém.

Esmeralda chorava mais, era um lago de lágrimas e voltava para o quarto escuro. Por causa da escuridão, só via um vulto triste e louco, sem nunca perceber aquilo que era a sua sombra.E nos jantares os olhos brilhavam mais ainda, por causa das lágrimas, que não acabavam e a lavavam. Os olhos, quanto mais tristes, mais azuis. Tal fazia os convidados continuar a beber, o rei ser mais gordo e o império mais rico.


DEPRESSA DEPRESSA


Depressa, depressa, depressão.

Foi tão rápido que foi súbito, o dia em que tudo mudou.

Acabou a Internet, de um dia para o outro, num ápice, num
esquilo, num tiro. Isso mesmo: acabou a internet, muito rápido,
depressa, depressa, depressão.

João foi o primeiro a perceber, pois foi ele que inventou o fim da internet. Estava a caminho do trabalho, deprimente, saído da casa da mãe, que tinha uma depressão clínica, diagnosticada, justificante. Depressa, depressa, depressão, João pensava no que era a depressão. Filosofava, e isso é do mais chato que há. Era uma coisa social, não era só deles, via-a por todos os lados, não era só uma realidade social. A depressão era uma lei universal, em depressão está tudo por baixo de pressão, ou seja, tudo quando existe, debaixo do céu, e acima dele também. A vida é uma lomba.

Mas a mãe tinha uma depressão diagnosticada; isso era outra história. Uma depressão clínica é o cúmulo da depressão social, um cume para baixo, uma queda tão abismal quanto se possa imaginar, aliás, um desamparo para lá da imaginação. Quem não sabe o que é uma depressão clínica é inca- paz de perceber o que ela é, tanto como é incapaz de voar, andar de bicicleta com os olhos fechados ou nadar duas horas por debaixo de água. João, na sua depressão, que era a da mãe, que era a da sociedade, que era a da condição humana, conseguia suspeitar qual o sabor, qual o saber de um estado a que se chama depressão profunda.

A mãe estava fechada em casa há três meses. João entrava e saía da casa que tinha ares de mas- morra, a depressão arrastada a ele, como asas. Só João abria as janelas da casa, para que o fumo do tabaco fosse trocado por ar menos comprimido. Dava-lhe de comer. Se a mãe velha fosse comer sozinha, o pobre sentia ter alcançado uma pequena vitória.

A depressão é contagiosa. Ela pega na mãe do João, que a pega ao João, que vai para o trabalho deprimente, que deprime as pessoas. João trabalhava numa loja de fotocópias e impressões.
era-lhe impressionante e
deprimente a quantidade de
coisas deprimentes que
imprimia diariamente.

Trabalhos de Direito, dissertações inúteis que ninguém ia ler, cartas para flirts falhados, panfletos publicitários. Canecas com fotografias de carecas, tapetes de rato para marcas de laboratórios ou em- presas farmacêuticas, vendedores de antidepressivos que eram deprimentes. Fotografias de casais enganados pelo amor, esticadas em tela. Autocolantes para espetar em carros.

Poluição rima com depressão.

Era inverno e isso agravava, obviamente, as depressões. O sol brilhava só de vez em quando, havia muitos dias de chuva, demasiadas nuvens, poucos dias de luz… e há lá coisa mais deprimente do que essa?

Nesse dia de inverno, porém, o sol apareceu. Vinha no boletim meteorológico. Mas era Dezembro e o sol tímido e pálido, como o João e as pessoas que deambulavam ao pé do rio, aproveitando. Um solzinho tímido e pálido punha as pessoas pálidas quase menos tímidas. Já quase olhavam umas para as outras, já quase sorriam, já quase viviam, pelo menos ali, ao pé do rio, pelo menos ali, naquele dia de Inverno com sol.

João caminhou para cima e para baixo, ao lado do rio tranquilo, tentando abanar a depressão. Fechou os olhos ao sol, deu a face ao calor, curou qualquer coisa. Olhar para os outros punha-o mais triste. É muito grave quando isso acontece, sobretudo a alguém que, como ele, trabalhava em atendimento ao público.

Olhou para o relógio tão deprimente. Dizia que eram horas de ir para o trabalho, atender às depressões dos outros. Naquela loja, sentava-se num banco mau para as costas, fazia encomendas por email, imprima a cores, preto e branco, frente e verso, pequenos e grandes formatos. Desse por onde desse, era depressão. T-shirts com frases deprimentes, sweat-shirts com frases deprimentes, presentes de Natal. Cartões de crédito que não funcionavam, os computadores encravando. O fornecedor de tinteiros que chega atrasado, e ainda por cima a fatura é mais cara, por causa de uma de- pressão qualquer. O homem que traz os tinteiros não pode fazer nada, está a responder, está a re- portar, está a atender, nem a ser ele tem direito.

O dia acabou. Foi para casa. Já não havia sol para ninguém. Quando chegou a casa, a mãe estava a olhar para o telefone.

Haviam duas vitórias nos dias do João: quando a mãe comia sozinha e se fosse às redes sociais. Ela passava o inverno todo naquela depressão, parada e presa, a olhar para o vazio. Só conseguia, de vez em quando, navegar nas redes sociais, e isto se comesse. Quando o fazia, era sinal de melhoria, ao menos mexia os dedos e os olhos, havia uma nesga de vida dentro de si.

Uma depressão clínica e diagnosticada é isto: uma pessoa está tão triste que não se mexe. É como se estivesse morta. Foi neste dia que João decidiu não pagar a conta da Internet.

More by Luis Brito

Coisas que nunca mudam

E eu ainda era vazio de medo por ti, por isso punha a mão para cima, pedindo descendência da tua. E a tua mão lá descia, música de elevador, quente como paninhos, tinha veias como as esquinas das cobras que estão sempre caladas, roías as unhas até encolherem como conchas, e a tua mão lá descia descendência para se dar à minha e entrelaçávamo-nos por meio dessas minhocas que são os dedos. Coitado de ti. Antes disso, andaste comigo ao colo, gemias músicas de embalar a meio da noite quando também precisavas de ressonar. Limpaste-me o rabiosque várias vezes, tocaste com as minhocas nos meus cocós...
Written in PT by Luis Brito
More in PT

O retrato

A casa tinha uma porta de carvalho e uma fachada imponente. Não havia nomes na campainha. David demorou um pouco a descer e eu fui olhando a rua à minha volta. Era calma e branca, não se comparava com o bairro ao pé do canal onde a Sam e eu morávamos. Eu oscilava entre o devaneio e a irritação, como me acontecia muitas vezes quando era confrontada com coisas que não me podia permitir. Ele abriu a porta e sorriu-me. Tinha a camisa aberta. Eu subi as escadas atrás dele e fui novamente envolvida pelo cheiro dele: nozes e terebintina. O atelier estava tão desarrumado como da outra vez, mas havia...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels

O tempo é um circo

De madrugada, sonhou com um crime cometido sob uma amendoeira e quatro bilhetes de lotaria, todos sem prémio. Era domingo. No sonho, o jovem médico chorou e despertou com as bochechas húmidas, abraçado por uma tristeza púrpura. Come sem apetite, veste-se de luto e espera pelo telefonema que deveria confirmar quem morreu nessa noite. O seu avô nascera perto do início do século XX num mundo demasiado longínquo para que as pessoas tivessem mantido algumas fotografias dele. O pai do seu avô tinha falecido trinta anos antes do jovem médico nascer. Ele vinha de um tempo ainda mais antigo, quando os ...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Andrei Crăciun

Alguns minutos à deriva

O dia começou mais cedo do que tinha pensado. Tinha posto o alarme para tocar às 5.56 por várias razões. Queria ter tempo para a meditação matinal e também, para poder aguardar trinta minutos que o comprimido que melhora as funções da tiroide fizesse efeito antes do café, e depois, começar uma série de exercícios que combinam o queimar das gorduras com a tonificação dos músculos, usando somente o próprio peso, sem esquecer, entretanto, de ligar o esquentador elétrico, porque o aquecimento da água leva umas quatro horas, o que me dá tempo de sobra para acabar também a sequência de ioga para ab...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Cristina Vremes

Depois da Última Ceia

Têm sido dias fantásticos. Morrer é assim, lembro-me de cada minuto. É como se estivesse deitado sobre o mapa do agora, em alto relevo. Estou de costas, para sentir cada pico de montanha, cada vale, todas as planícies. A vida não corre para a frente nem para trás, é só agora, agora, agora. Ao fim de algum tempo sinto uma dor extremamente localizada, tal qual um punhal, e fico extraordinariamente acordado, como no instante em que o juiz me condenou à morte. Morrer é assim, acontece várias vezes, mas uma delas é a definitiva. A sensação de fim pode durar muito tempo, comigo dura desde o anúncio ...
Written in PT by José Gardeazabal

O final feliz

      Foi a chuva que me acordou. Meteu-se no meu sonho e no início eu não sabia de que mundo vinha. Eu a nadar na infinidade do Pacífico. Sei que era o Pacífico, conheço bem o Oceano Pacífico da televisão. Eu a nadar no turquesa e no cristal. É assim mesmo que dizem nas reportagens, turquesa e cristal. Na anca levava umas fitas que apertavam o fato de banho com umas continhas coloridas penduradas. Recordo-me dele das fotos, o meu primeiro fato de banho, ainda de menina. Enquanto eu fazia o nó, o céu abriu e deixou cair uma cortina de água. As gotas pesadas caíam na minha cabeça e nos meus bra...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Jasna Dimitrijević

Como nos tornaremos menos

1. Na sua sala de estar, encontra-se pendurado, para além de um calendário, a conta de um restaurante onde tinham decidido ficar juntos e algumas fotografias, uma lista de todos os animais e plantas que se encontram em risco de extinção: 3.079 e 2.655, respetivamente. Ela já tinha esta lista desde os seus treze anos, e, por ausência de autocolantes, tinha colocado pensos junto aos animais que desejava ver. Ele pensou que se tratasse de uma lembrança da infância dela e nunca tinha considerado a possibilidade de irem à procura de animais e plantas em risco de extinção. Quando um novo animal entr...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Rebekka de Wit