Reading platform
Welcome to our publication platform! You can browse and search for stories and samples from all our writers. Thanks to our translators, each story is available in Czech, Dutch, Italian, Polish, Portuguese, Romanian, Serbian, Slovene and Spanish. Throughout the years, this platform is becoming a growing archive of European literature by the future generation of literary artists. We're sharing stories beyond barriers.
Empalhar um corpo
Debaixo da nossa pele há mundos inteiros. Se é que se pode confiar nas ilustrações. Às vezes não tenho a certeza. Agarro na minha clavícula. Fica toda espetada para fora quando encolho os ombros. Faço isso muitas vezes. A clavícula é um ossinho sólido mas fino. Podia parti-lo. Talvez não com as mãos nuas, mas se lhe desse uma pancada com um objeto pesado, com aquela estátua de pedra maciça, por exemplo... Aí era de certeza. Não é preciso muito para acabar com tudo. Basta engasgarmo-nos uma vez e já está. Para onde é que vão os bocados de comida que entram no canal errado? Além das amígdalas pe...
Translated from
NL
to
PT
by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker
A aprendizagem
Quando construí o primeiro, pensei ter criado uma obra-prima. Como um pintor a terminar o quadro inaugural da sua carreira, que renegará com a mesma veemência com que o perfilhou originalmente. Fi-lo à minha imagem e semelhança e, quando lhe vi vida nos olhos pela primeira vez, foi como se me olhasse ao espelho. Apenas pela dessincronia do reflexo desfiz o equívoco. Não fui módico nas habilidades que lhe dispensei: força, agilidade, espírito combativo, uma extraordinária capacidade estratégica. Ainda assim, levei apenas dez minutos a derrotá-lo. Parecia estar a lutar com uma criança amblíope e...
Written in PT by Valério Romão
Diário
21 de agosto
Chamo-me Erik Tlomm e este é o meu diário. Foi o psiquiatra que me recomendou escrever, supostamente para ter melhorias no tratamento. Contudo, para quem devo escrever? Para ele? Para a minha esposa Lina? Mas com certeza não lhe vai mostrar o que eu escrevi. Quando lhe perguntei, respondeu: «Escreva para si próprio.» Então, comprei uma caderneta de couro e eis-me aqui, sentado à secretária, a escrever-me um diário, sem conseguir afastar a sensação de escrever também para outra pessoa – mas para quem?
22 de agosto
Deixem-me explicar o meu primeiro registo no diário (...
Translated from
SL
to
PT
by Barbara Jursic
Written in SL by Mirt Komel
Linguado
Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem.
No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar.
Ninguém dirá «72 segundos!»
É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios.
Estou sentada no fundo da piscina e olho para ...
Translated from
NL
to
PT
by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker
O nosso pai
O corpo inteiro do meu meio-irmão tomou a forma da sua indiferença. As suas pernas, ligeiramente arqueadas e enfiadas numas calças de ganga desbotadas, acabam em pés que quase não levanta do chão enquanto caminha, pelo que a sua presença é constantemente acompanhada por um som de arrasto dos pés. A parte superior do seu corpo é como um bolo deformado colocado à volta da cintura. Tem ombros curvados para a frente e braços esguios que só levanta quando é mesmo necessário. Mas aquilo que primeiro me salta à vista quando ele surge por trás da porta de casa são as suas sobrancelhas e os cantos da b...
Translated from
NL
to
PT
by Pedro Viegas
Written in NL by Lotte Lentes
Perguntem ao Relâmpago
Não era a minha intenção causar um burburinho. Mas de repente assim foi. Falei na escola sobre o acidente de viação e uma coisa levou à outra. Estava pela ponta dos cabelos com os exames, de maneira que nunca conseguia acordar a horas, embora me propusesse sempre na véspera de cada prova a folhear atentamente tudo aquilo que ainda não tinha aprendido. Depois do bipe irritante do despertador da minha mãe, que tinha de estar bem mais cedo no emprego, voltava sempre a cair num sono profundo, tão profundo que mal ouvia o meu próprio alarme. O meu pai vinha-me então tirar do ninho mesmo a te...
Translated from
NL
to
PT
by Xénon Cruz
Written in NL by Carmien Michels
Alguns meses mais tarde
12 de agosto
«Mohamad, daqui a meia hora, esteja perto do telefone. Acho que a encontrei!»
Salto da cama num empurrão, visto-me abstraído o mais rápido possível e saio da pensão. Rápido. Como se fosse diferente chegar a casa cinco minutos mais cedo ou mais tarde. Quase corro, descendo a ladeira na direção do porto, ali entre o bairro judeu de Hardara Carmel e o outrora palestiniano de Wadi Salib. Porém, ouço a serra que provavelmente corta o ferro e as galinhas e os galos. Incrível. O cheiro a fazenda no meio da cidade que quer apagar a sua história e ser moderna. Como se regressasse ao ano...
Translated from
SL
to
PT
by Barbara Jursic
Written in SL by Andraž Rožman
Fios
A procura não começa de forma consciente. Sinto-me ligada a ela de uma forma perturbadora, inexplicável, e o seu desaparecimento deixa-me sozinha frente às minhas interrogações. Ao acordar pergunto-me onde dormirá e como vive e continuo a pensar nela, masturbando-me doce e suavemente entre os lençóis enquanto olho para as nuvens pela janela basculante. Quando passo pelas barracas de fruta no nosso bairro, vou tocando nas laranjas com as pontas dos dedos, até que encontro uma que me lembra a sua pele, uma com os poros perfeitos.
Aterrei nas suas aulas de yoga devido às minhas constantes dores ...
Translated from
NL
to
PT
by Lut Caenen
Written in NL by Hannah Roels
A Alameda do Amanhecer
Cada homem goza de direitos, porém estes direitos são divinos, e não pode ser de outro modo, numa última frase, não é obrigatório que esta frase seja longa nem semelhante a um bilhete de despedida, o que conta é que seja verdadeira, com uma verdade que a preencha, mesmo que seja a última, porque a verdade tem o hábito de ser caprichosa, o que não significa que não exista, existe seguramente e deve ser revelada, mas não num conto, o conto contém a sua verdade intrínseca, não a mesma da verdade verdadeira nem menos, mas esta frase é minha por direito para uma história e segui-a até ao fi...
Translated from
RO
to
PT
by Simion Doru Cristea
Written in RO by Andrei Crăciun
Chiclete Blues
23,40 euros. É esse o montante que figura, em algarismos verde-alface, na registadora do guiché. Umas mãos pálidas e enrugadas colocam cautelosamente, uma por uma, as moedas amarelas e castanhas na gaveta do dinheiro, ao lado de uma nota de vinte euros. Logo a seguir, as mãos fecham a pequena carteira em pele, ao mesmo tempo que uma voz condicente de senhora emite sons apaziguadores.
— Calma, também te vão dar um bilhete — cochicha a senhora ao seu cão, que, tal como ela, permanece fora do alcance do nosso olhar. Quando a gaveta se volta a abrir, as moedas desapareceram e, no lugar del...
Translated from
NL
to
PT
by Xénon Cruz
Written in NL by Carmien Michels
Mesmo Que apenas Uma só Gota Possa Ser Vista
The white cracker who wrote the national anthem knew what he was doing. He set the world “free” to a note so high nobody can reach it. That was deliberate. Angels in America,
Tony Kushner
O meu pai e eu íamos a caminho do aeroporto. Eu ia passar um mês aos Estados Unidos e ele fazia questão de se despedir de mim lá. Ia a Charleston, uma pequena cidade no litoral da Carolina do Sul. O meu pai perguntou-me como é que a cidade era, e eu apercebi-me, nessa altura, de que não tinha ido à procura de quaisquer imagens no Google. A única coisa que sabia é que tinha havido um tiroteio na cave ...
Translated from
NL
to
PT
by Pedro Viegas
Written in NL by Rebekka de Wit
Estação de tratamento
Vagueava defronte de um aglomerado de dormitórios do estaleiro, esfregando as suas mãos frias. Ao longe, dois corvos-marinhos cintilavam por cima do rio. Pouco depois, ela começou a olhar em todas as direções e a verificar a mensagem de texto que chegara ontem. “Olá Petra, ação ETAR amanhã às oito. Encontro frente à ponte junto do aglomerado. A.” Ela leu-o mais três vezes antes de a luz do visor se apagar.
A antiga e a nova estação de tratamento que partilhavam os resíduos vindos de toda a cidade ficavam uma atrás da outra na ilha, tal como governadores do rio. Enquanto a mais antiga se ergui...
Translated from
CZ
to
PT
by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Anna Háblová
O Marcador
Primeiro, Robert fica sozinho no sofá, à esquerda da mancha que há uns meses Sven fez com um marcador vermelho. Ele pergunta como é que estou, se as farmácias e as lojas estão abertas, se tenho tudo o que preciso, o que é que vou fazer se acontecer alguma coisa. Estou bem, estão abertas, tenho tudo, não se vai passar nada. Todos os dias ele pergunta as mesmas coisas, todos os dias eu respondo-lhe o mesmo. Aqui nada acontece depois das cinco da tarde. Queria também acrescentar: O propósito do confinamento é que não se passe nada - mas não o disse, seria imprudente da minha parte. Então Ro...
Translated from
SR
to
PT
by Ilija Stevanovski
Written in SR by Jasna Dimitrijević
Ponto de fuga
Trata-se da história de um homem que não quer perder o caminho para casa. Ele é feito de massa de pão. Parte de casa. À medida que vai caminhando, retira uma migalha de si próprio e deixa-a cair no chão. Começa por retirar um dos braços. De seguida, as orelhas. O nariz. Mais tarde, arranca uma parte da barriga, surgindo um buraco. Na cena seguinte, olhamos através do buraco da barriga do homem. Através do buraco da barriga dá para ver, à distância, uma casa pequena. Atrás da janela, vê-se uma mulher idosa à mesa. A mulher encontra-se a amassar massa de pão. Música comovente. Fim.
Trat...
Translated from
NL
to
PT
by Pedro Viegas
Written in NL by Maud Vanhauwaert
Ortensio
Ele pensa que o mundo é feito de linhas. Não são paralelas, não lhe importa onde vão encontrar-se. Importa o espaço que as separa, aquilo que o preenche, o que nasce e o que morre no tempo que as contém, imutáveis e imaginárias, na solidão de quem as observa.
É uma linha o horizonte que divide o céu do golfo de Santa Eufémia. Muitas vezes, se o pôr do Sol é límpido, o Stromboli parece mais próximo. Surge como uma pirâmide quase negra, do cume nasce um ténue fumo cinzento que Ortensio distingue a custo. É uma linha, aquela formada pelos seixos que, na margem, antecedem a linha de rebent...
Translated from
IT
to
PT
by Ana Cristino
Written in IT by Maurizio Amendola
Torcidos
Naquela noite chamava-me, e não parecia que fosse parar. — Mamã. Mamã!
Dizia-o assim, oferecendo-o a mim e ao quarto enquanto se encolhia numa escuridão de cera, cheia de brinquedos (a sua única propriedade). Voltou a gritar-mo, com muito mais força, e então afastei o olhar e acariciei o copo de uísque, mesmo debaixo da base, até que a humidade passou para a ponta do dedo.
A palavra estava bem cosida ao seu cérebro desde bebé.
Fiquei muito quieta enquanto observava a forma brilhante e obsti nada da gota. Não era um crime deixar que aprendesse a sentir frio, ou como tragá-lo. Imaginava ...
Translated from
ES
to
PT
by Matias Gomes
Written in ES by Matías Candeira
O reencontro
Já chega. Arrumei as malas, o fato na capa, a calçadeira de sapatos e entreguei a chave. Até casa tenho de conduzir durante seis horas, mas o caminho de regresso é mais curto. Abri a janela e, com a cabeça de fora, atravesso cada vez mais rápido a avenida principal da cidade. No fresco da noite e da velocidade, o ar corta-me a face e isso recorda-me a aspereza da esponja desmaquilhante. Tenho uma tez sensível e não suporto com facilidade o tratamento que os apresentadores do noticiário têm de fazer para não se parecerem com uma lua cheia de brilho – é-lhes aplicada uma camada de base em pó, qu...
Translated from
RO
to
PT
by Cristina Visan
Written in RO by Alexandru Potcoavă
O zumbido
No comboio, na última parte da viagem, tinha visto pela janela pegajosa as bordas do céu. Levantou-se para ver também do outro lado da carruagem e aproximou-se do homem adormecido com a cara escondida atrás do cortinado e com a mão direita firmemente pousada na pequena mala de viagem, que estava no assento ao lado. Sim, da sua janela via-se o mesmo. Um cobertor compacto, azul índigo, num plano paralelo ao campo extenso, cheio de molhos secos. E na sua orla, um azul aberto e claro, como um mar afastado, suspenso entre o céu e a terra.
Por cima da camada índigo, estava sol.
Quando se levantou,...
Translated from
RO
to
PT
by Cristina Visan
Written in RO by Lavinia Braniște
Elogio do Furacão
Apreciei sempre a violência do quotidiano: por exemplo, a de um copo que se parte na escuridão. Às vezes, pergunto-me se essa memória é realmente minha. Revivo a cena com uma alegria difícil de conter: o objeto que cai e se desintegra e se torna estrépito surdo e logo tumulto de vozes a meio da noite. A minha mãe carrega no interruptor para iluminar os vidros espalhados. A sua mão aberta no ar, por cima de mim. O som da bofetada que não se parece, de modo algum, com o som do vidro contra o chão e a sensação de compreender que tudo faz parte da cerimónia. A violência que principia com um copo e...
Translated from
ES
to
PT
by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano
Os Meninos Escritores
Quase tudo o que aconteceu nesse dia passa-se aqui. Estou com o indicador apontado à cabeça. Muitos anos depois, enquanto levo o meu filho a descobrir o gelo, ainda recordo todos os acontecimentos daquele único dia como «o fuzilamento».
Ninguém morreu. As pessoas eram perigosas, especialmente as crianças pequenas, penduradas nas árvores. Os pés a balançar — e era da língua no meio da boca que viriam os piores crimes.
Ouvir dói, caminhar é um truque. Caminhemos.
Mesmo os pequenos ditadores envelhecem. Os filhos coabitam a terra com os pais, há milhões, talvez milhares de anos. Imagin...
Written in PT by José Gardeazabal