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Welcome to our publication platform! You can browse and search for stories and samples from all our writers. Thanks to our translators, each story is available in Czech, Dutch, Italian, Polish, Portuguese, Romanian, Serbian, Slovene and Spanish. Throughout the years, this platform is becoming a growing archive of European literature by the future generation of literary artists. We're sharing stories beyond barriers.

De regresso a casa

Quando voltam a entrar no carro, deixando a cidade, ele tenta desdramatizar dizendo que foi uma daquelas situações impossíveis, que designa por Que-farias-tu-se? Ela anui. — Essas situações não são o teu forte — comenta. — O que é que queres dizer com isso? Não sei que porra mais deveria ter feito? — Não digas asneiras. O Matteo repete tudo o que tu dizes. Alice dá uma espreitadela atrás de si. Matteo vai derreado na cadeirinha. — Podes dizer-me o que fiz de mal? — pergunta ele passado algum tempo. — Davide, perdeste as estribeiras, desataste aos murros ao vidro. Se não tivesse sido eu, ...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Fabrizio Allione

A Tapioca

Foi o ronco do motor da carrinha da associação que anunciou que era hora de almoço naquele dia em que o sol de tanto queimar não se via. O velho estava debaixo da figueira, envergando uma camisa muito suja toda desabotoada, com um riso irónico na boca fechada para segurar o cigarro. Ficou a ver a brasileira - duas grandes manchas de água debaixo dos braços e as costas da farda igualmente ensopadas - sair do veículo; ir buscar as marmitas e dirigir-se para o anexo que funcionava como cozinha onde era hábito ele estar. — Tio João! Tio João! O riso a contrair todas as rugas do rosto, abrindo re...
Written in PT by Daniela Costa

A Ilha

Até hoje não sei bem o que estava a fazer nas ilhas. De que estava à procura? Sei só o que deixei para trás. O país que me deu o passaporte. A mulher que me deu a vida. Tantas coisas que podia comprar com dinheiro. O mundo que eu não conseguia e não sabia mudar. A água do mar estava morna. Ao anoitecer, as ondas resplandeciam repletas de plâncton. Depois de tantos anos de viagem, já não sabia reconhecer bem as docas entre palmares onde normalmente costumava apanhar os sucessivos barcos. Fiquei confusa com os nomes das ilhas, todos começados por palavras como koh e nusa. Fiquei confusa com os...
Translated from PL to PT by Katarzyna Ulma Lechner
Written in PL by Urszula Jabłońska

Com as aves, partilho o céu

      Às vezes, torna-se insuportável. Manducam tão alto que me despertaram. E não só, também discutem quem terá o bocado mais saboroso e não me deixam adormecer. Tudo se ouve, embora haja vidros duplos nas janelas e as esquadrias isolem bem. Um quer sementes de abóbora, outro de linho, porque estalam tão entusiasticamente, os mais pequeninos querem, sôfregos, as migalhas de pão. As fêmeas não querem, de maneira nenhuma, o bolo de sebo. Quem diria que os tordos-comuns, os pintarroxos, os chapins-azuis e os verdilhões não queiram encher o seu aparelho digestivo com absolutamente nada do que lhe...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Agata Tomažič

Calcário

Ora, está visto que leva muito tempo para uma cabeça de chuveiro ficar entupida com calcário. Agora que me balanço aqui, com o tubo do chuveiro enrolado à volta do pescoço, meio pendurado no corredor, meio pendurado por cima das escadas, penso: se todos os meus amigos tivessem visto a casa de banho, tinham percebido logo. Se todos tivessem subido uma única vez ao andar de cima, como fez a Ema naquela tarde, teriam olhado para a cabeça de chuveiro, teriam aberto e fechado a torneira, teriam visto a divisória de vidro calcificada do duche, teriam reparado nos pelos da barba feita à pressa no lav...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Apesar da primavera

      Sob a luz intensa duma lâmpada de néon da fraca qualidade, Mariana Gruić cuspia tentando limpar a lama das suas coxas. Ainda era jovem e ainda capaz de correr numa flecha até à entrada, nem sequer tinha que andar pelo caminho pavimentado, as sapatilhas gastas que tem dão-se bem com a terra e a poeira. Mariana refletia sobre a vida, ainda ontem pulava elástico, e já hoje o namorado beijou-a de língua e ela sentiu uma língua alheia, quente e áspera, a encher-lhe a boca. A vida vai mudando, dizia a avó de Mariana, a vida vai mudando sem parar, só que vai ficando sempre pior. Mariana Gruić a...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Ana Marija Grbic

A evolução de um dente do siso

Mais 47 noites O assistente do dentista tira o gancho da minha boca. – Está a ver isto? – pergunta quase com orgulho. O gancho está coberto com uma camada de saliva acinzentada. – Isto saiu da bolsa. É uma palavra estranha para designar um buraco entre a gengiva e um dente do siso. Uma bolsa parece uma coisa grande, onde se pode guardar chaves, e talvez até gel para as mãos ou um telemóvel. Tudo o que está dentro da minha bolsa são restos de comida triturados com alguns meses. O dentista aparece pouco depois e aponta para o meu maxilar no ecrã do computador. O dente do siso inferior do ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

PISK

Dia 28 de novembro de 2020, um mês depois do dia em que o politizado Tribunal Constitucional tornou o aborto ilegal na Polónia. Magda Dropek, uma das organizadoras dos protestos feministas em Cracóvia, escreveu no Facebook: “Durante estes anos em que apoiei as ações nas ruas tive a certeza de uma coisa: que não consigo gritar e clamar, que sou demasiado caótica para falar de maneira rápida e lógica, por isso, sempre me senti bem em transferir o que penso para o papel ou para o ecrã, escrever, comunicar sem usar a voz. Ainda por cima, a minha voz, detesto-a. Nas últimas semanas gritei como nun...
Translated from PL to PT by Katarzyna Ulma Lechner
Written in PL by Aleksandra Lipczak

Jericó

Parte I – A Quinta [...] I [...] A quinta, como lhe chamavam, erguia-se solitária num planalto no cimo de uma colina baixa. Era uma casa rural com dois pisos, uma construção de madeira, retangular, estreita e comprida. Do janelão do piso superior, sentado na cadeira de balouço, no corredor, Jens observava o campo que se estendia para lá do rio. Os seus pequenos olhos pretos não paravam de se mexer, explorando o horizonte envolto na escuridão, atentos a qualquer pormenor suspeito. Elia e Natan estavam sentados no chão, ao seu lado, a brincar com carros em miniatura enferrujados. Ouvia-se ...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Fabrizio Allione

O reencontro

Já chega. Arrumei as malas, o fato na capa, a calçadeira de sapatos e entreguei a chave. Até casa tenho de conduzir durante seis horas, mas o caminho de regresso é mais curto. Abri a janela e, com a cabeça de fora, atravesso cada vez mais rápido a avenida principal da cidade. No fresco da noite e da velocidade, o ar corta-me a face e isso recorda-me a aspereza da esponja desmaquilhante. Tenho uma tez sensível e não suporto com facilidade o tratamento que os apresentadores do noticiário têm de fazer para não se parecerem com uma lua cheia de brilho – é-lhes aplicada uma camada de base em pó, qu...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Alexandru Potcoavă

Um carro da Grécia antiga

Era um dia quente de junho. Só que não se dizia junho, mas antes Thargelion ou Skirophorion. As duas figuras saíram das muralhas de Atenas e, em amena conversa, dirigiram-se, ao longo do rio Ilissus para o campo. Falavam sobretudo de amor. O mais novo dos dois, o jovem, levava consigo uma transcrição do discurso de outra pessoa sobre o amor ser o mal, e ele até acreditava nisso. Na verdade, ele falava apenas desse discurso de outra pessoa. O homem mais velho discordou com ele mentalmente, mas deixou-se levar pela paixão do jovem. E assim pararam debaixo de um grande plátano onde o mais velh...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Ondrej Macl

Notas sobre a vida de Frances Donnel

Prólogo Em 1945, Frances Donnell, escritora e conhecida criadora de aves, nasceu nos Estados Unidos. Em 1983, fingiu morrer de lúpus, doença que a afligia desde a sua juventude. Meses depois da sua tentativa, descobriu-se que tinha sido tudo um boato. Após uma pequena polémica, a que chegaremos no momento oportuno, Frances permaneceu no anonimato durante várias décadas. Já no século XXI, chegou a Espanha com a dureza da doença às costas, pois aquela não tinha deixado de crescer dentro de si. Costumava dizer que tinha abandonado o seu país no momento em que se tornara demasiado velha para sent...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Adriana Murad Konings

Eu não era, mas agora sou. Sensível a qualquer mudança do tempo.

Lá do outro lado do canal levávamos na cara com o vento carregado de flocos de neve, mas depois de atravessar a ponte, já nesta margem, fica-se de costas ao vento, o que torna o processo todo um pouco mais agradável. Desta nova posição a paisagem pode ser contemplada com menos esforço, sem fechar os olhos. O canal ainda não está completamente congelado mas não tarda e o gelo fecha e cobre tudo, é questão de poucos dias. Não há nada a fazer. À primeira parecia ser uma miragem, mas logo se confirmou que havia lá, no meio do canal, um cisne a tentar passar abrindo sempre um caminho na superfície ...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Marija Pavlović

Diário

21 de agosto       Chamo-me Erik Tlomm e este é o meu diário. Foi o psiquiatra que me recomendou escrever, supostamente para ter melhorias no tratamento. Contudo, para quem devo escrever? Para ele? Para a minha esposa Lina? Mas com certeza não lhe vai mostrar o que eu escrevi. Quando lhe perguntei, respondeu: «Escreva para si próprio.» Então, comprei uma caderneta de couro e eis-me aqui, sentado à secretária, a escrever-me um diário, sem conseguir afastar a sensação de escrever também para outra pessoa – mas para quem? 22 de agosto       Deixem-me explicar o meu primeiro registo no diário (...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Mirt Komel

Uma vida a meio

Casablanca, 1954 Ela filtra o ruído das crianças a brincar lá fora e todos os dias guarda alguns sons aos quais se agarra obstinadamente. Colhe os poucos sons que penetram através das paredes. Passados alguns meses já conhece os vizinhos todos, embora nunca saia do quarto. Sabe que estão sempre a aparecer credores em casa dos vizinhos do lado, mas não adianta porque o homem não quer pagar. «Nem que me arranquem primeiro os órgãos do corpo e me matem depois» é o que o ouve dizer à mulher depois de os credores saírem. Quando ouve estas coisas tem a sensação de ser um elo na história e nos segre...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Aya Sabi

Coisas que nunca mudam

E eu ainda era vazio de medo por ti, por isso punha a mão para cima, pedindo descendência da tua. E a tua mão lá descia, música de elevador, quente como paninhos, tinha veias como as esquinas das cobras que estão sempre caladas, roías as unhas até encolherem como conchas, e a tua mão lá descia descendência para se dar à minha e entrelaçávamo-nos por meio dessas minhocas que são os dedos. Coitado de ti. Antes disso, andaste comigo ao colo, gemias músicas de embalar a meio da noite quando também precisavas de ressonar. Limpaste-me o rabiosque várias vezes, tocaste com as minhocas nos meus cocós...
Written in PT by Luis Brito