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Welcome to our publication platform! You can browse and search for stories and samples from all our writers. Thanks to our translators, each story is available in Czech, Dutch, Italian, Polish, Portuguese, Romanian, Serbian, Slovene and Spanish. Throughout the years, this platform is becoming a growing archive of European literature by the future generation of literary artists. We're sharing stories beyond barriers.

Não quero ser um cão

Escrevo no teclado: «PÔR FIM A UM DESGOSTO DE AMOR». Vejo histórias de pessoas mas não quero histórias. Quero soluções, não quero compaixão. Isto tem de parar agora. «TRANSFORMAÇÃO», escrevo. O Google diz que há transformação na matemática e na genética. Opto pela segunda e com isto faço a minha primeira escolha. Estou farta deste corpo que já foi beijado por demasiadas pessoas, que talvez até esteja estragado. Tenho sido muito imprudente com ele, demasiado descomprometida, tem de acabar, tem de ser outro e melhor. Transformação genética. «Cura com sumos» aparece no ecrã. «Transforma-te numa v...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Alma Mathijsen

A Tapioca

Foi o ronco do motor da carrinha da associação que anunciou que era hora de almoço naquele dia em que o sol de tanto queimar não se via. O velho estava debaixo da figueira, envergando uma camisa muito suja toda desabotoada, com um riso irónico na boca fechada para segurar o cigarro. Ficou a ver a brasileira - duas grandes manchas de água debaixo dos braços e as costas da farda igualmente ensopadas - sair do veículo; ir buscar as marmitas e dirigir-se para o anexo que funcionava como cozinha onde era hábito ele estar. — Tio João! Tio João! O riso a contrair todas as rugas do rosto, abrindo re...
Written in PT by Daniela Costa

A ponte

Todas as estações de comboio têm um relógio. Na verdade, têm mais do  que um. Em cima da bilheteira fica o principal. Depois, na gare de  embarque, estão os mais pequenos. Os úteis, pois são cúmplices da nossa  preguiça em tirar o telemóvel do bolso ou consultar o relógio de pulso.   As crianças ficam fascinadas por estes relógios. Como o ponteiro  dos segundos roda sem parar, acaba por ser o único momento em que  conseguem ver o tempo a passar. Olham o ponteiro a subir e, à medida que  se verticaliza, os seus coraçõezinhos batem mais depressa e os olhos  esbugalham-se. Quando, por fim, o indi...
Written in PT by João Valente

O regresso

As coisas descarrilaram em agosto, num domingo de manhã, quando os primeiros transeuntes da Place du Parvis Notre-Dame, empregados dos cafés da zona, viram o objeto, algo como uma bala gigantesca assente no solo com a ponta virada em direção à catedral e a parte traseira na direção da esquadra de polícia. Numa primeira estimativa, o projétil media por volta de vinte metros de comprimento e cinco de diâmetro. Os empregados de mesa e de bar aproximaram-se com curiosidade, deram uma volta, encolheram os ombros e foram abrir os restaurantes. Isto foi por volta das sete. Por volta das oito, os pad...
Translated from RO to PT by Cristina Visan
Written in RO by Alexandru Potcoavă

Pássaros que cantam o futuro

Parece uma mistura impossível de coruja, morcego, pinguim e texugo; tem a pelagem azul, os olhos grandes e vermelhos, o bico amarelo; não tem mãos mas sim duas asas pequenas que se acionam ao ligá-lo. Feliz aniversário, diz ela. Noa pensa que a compra valeu a pena, ainda que tenha ultrapassado um pouco o seu orçamento. Precisou de dez mesadas para reunir o dinheiro mas, agora, ao vê-lo a ele tão entusiasmado, alegra-se por ter renunciado ao cinema, ao parque de diversões e, inclusivamente, à pista de bólingue das Sextas-feiras com as suas amigas. Daniel segura o boneco como se fosse algo v...
Translated from ES to PT by Miguel Martins
Written in ES by Alejandro Morellón Mariano

De regresso a casa

Quando voltam a entrar no carro, deixando a cidade, ele tenta desdramatizar dizendo que foi uma daquelas situações impossíveis, que designa por Que-farias-tu-se? Ela anui. — Essas situações não são o teu forte — comenta. — O que é que queres dizer com isso? Não sei que porra mais deveria ter feito? — Não digas asneiras. O Matteo repete tudo o que tu dizes. Alice dá uma espreitadela atrás de si. Matteo vai derreado na cadeirinha. — Podes dizer-me o que fiz de mal? — pergunta ele passado algum tempo. — Davide, perdeste as estribeiras, desataste aos murros ao vidro. Se não tivesse sido eu, ...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Fabrizio Allione

Mesmo Que apenas Uma só Gota Possa Ser Vista

The white cracker who wrote the national anthem knew what he was doing. He set the world “free” to a note so high nobody can reach it. That was deliberate. Angels in America,   Tony Kushner O meu pai e eu íamos a caminho do aeroporto. Eu ia passar um mês aos  Estados Unidos e ele fazia questão de se despedir de mim lá.  Ia a Charleston, uma pequena cidade no litoral da Carolina do Sul.  O meu pai perguntou-me como é que a cidade era, e eu apercebi-me,  nessa altura, de que não tinha ido à procura de quaisquer imagens no  Google. A única coisa que sabia é que tinha havido um tiroteio na cave ...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Rebekka de Wit

O tempo é um circo

De madrugada, sonhou com um crime cometido sob uma amendoeira e quatro bilhetes de lotaria, todos sem prémio. Era domingo. No sonho, o jovem médico chorou e despertou com as bochechas húmidas, abraçado por uma tristeza púrpura. Come sem apetite, veste-se de luto e espera pelo telefonema que deveria confirmar quem morreu nessa noite. O seu avô nascera perto do início do século XX num mundo demasiado longínquo para que as pessoas tivessem mantido algumas fotografias dele. O pai do seu avô tinha falecido trinta anos antes do jovem médico nascer. Ele vinha de um tempo ainda mais antigo, quando os ...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Andrei Crăciun

Francamente querida, tanto me faz

O Marek faz-me cair na cama e pelo seu rosto passa-se algo que combinado com o seu aperto, me faz perder completamente a orientação, como se a nossa cama fosse uma avalanche em que ele me afundou e eu esquecia onde é em cima e onde é em baixo. Tudo isto dura apenas um segundo, esse aperto e essa sua expressão, no momento seguinte saca-me da avalanche, e ainda que eu permaneça na posição horizontal, já me é perfeitamente claro onde é em cima e onde é em baixo. E só agora atinjo, mas mesmo assim apenas em contornos, agora me apercebo dessa ideia, que dispara pela minha cabeça como se alguém acen...
Translated from CZ to PT by Stepanka Lichtblau
Written in CZ by Lucie Faulerová

Clarões

Numa coletânea de ensaios intitulada O Zen e a Arte da Escrita, Ray Bradbury escreve que, dos vinte e quatro aos trinta e seis anos, passou o tempo a anotar listas de substantivos. A lista dizia mais ou menos assim: O LAGO. A NOITE. OS GRILOS. A RAVINA. O SÓTÃO. O RÉS DO CHÃO. O ALÇAPÃO. A CRIANÇA. A MULTIDÃO. O COMBOIO NOTURNO. A SIRENE DOS NEVOEIROS. A FOICE. O CARNAVAL. O CARROSSEL. O ANÃO. O LABIRINTO DE ESPELHOS. O ESQUELETO. Ultimamente, aconteceu-me uma coisa semelhante. Vivi numa família que me proporcionou uma boa educação e uma boa forma de estar no mundo, mas ultimamente tenho pe...
Translated from IT to PT by Vasco Gato
Written in IT by Sara Micello

Parêntesis

      Suponho que nem o que temos de mais fiável - os sentidos, isto é, o que vemos, ouvimos, aquilo de que nos apercebemos com o corpo - é fiável em situações como a morte de um pai, o nascimento de um filho ou estar prestes a  morrer atropelado. Agora, que já enterrámos o papá, e estou por fim sozinho com os meus pensamentos, constato que ontem, no tanatório, tal como há trinta anos atrás, o tempo parou.  Por uns segundos, sim. Mas aconteceu outra vez. E soube, imediatamente, que se tratava do mesmo fenómeno que vivi em criança.        Naquela noite também estava com o papá.        Aconteceu...
Translated from ES to PT by Matias Gomes
Written in ES by Mariana Torres

Mas a casa ainda mora em mim

Um batismo. Um novo começo. Uma capa preta por cima dos meus  ombros, como um manto cerimonial. Ela pega na minha cabeça e inclina-a,  cuidadosamente, para trás. A água parece muito mais suave do que a água  do meu duche em casa. As suas pontas dos dedos massajam o meu couro  cabeludo. A minha cabeça. Esta minha cabeça. Esta cabeça sem a qual não posso viver. Esta cabeça pesada. Esta cabeça que se anuncia. Esta cabeça em  que pensamentos. Sempre pensamentos sem aviso prévio. Pensamentos  que nunca cessam. Fecho os olhos e tento imaginar que, juntamente com a  minha cabeça, ela também massaja o...
Translated from NL to PT by Pedro Viegas
Written in NL by Maud Vanhauwaert

O exílio

A cama era como uma caravela que trespassava as águas da noite. Abraçados, ambos tinham a textura de uma onda sombria, iluminada, de vez em quando, por um raio de luz. A caravela flutuava serena e misteriosa, e à volta a paisagem era apenas a infindável extensão das águas, sem que esta fosse assustadora. Tinham-se reencontrado há pouco tempo. Por vezes, jogavam ténis. Às vezes bebiam mesmo uma cerveja depois. Tais camaradagens efémeras aconteciam muitas vezes entre os empregados solitários que tinham sido transferidos para aquela cidade. Geralmente, preferiam transferir solteiros. Contudo, cu...
Translated from RO to PT by Simion Doru Cristea
Written in RO by Anna Kalimar

A ranhura do zangão

O dia zero  Os seus dedos deslizaram quase automaticamente até ao telemóvel, que pousou ao pé do prato da sopa. Não que esperasse que no ecrã aparecesse algo excitante, mas os velhos hábitos são difíceis de esquecer... De cada vez que veio passar alguns dias a casa, preferiu desativar a aplicação web de encontros. E ainda não saberia dizer se o fez por si se pela sua família – dado que se sentia desconfortável em deixá-los embaraçados –, ou se o fez para se proteger do desconforto de segunda mão: não suportaria que por entre os perfis avistasse as nicks deploráveis e as lamentáveis e meio dis...
Translated from SL to PT by Barbara Jursic
Written in SL by Agata Tomažič

Chiclete Blues

23,40 euros. É esse o montante que figura, em algarismos verde-alface, na  registadora do guiché. Umas mãos pálidas e enrugadas colocam  cautelosamente, uma por uma, as moedas amarelas e castanhas na gaveta  do dinheiro, ao lado de uma nota de vinte euros. Logo a seguir, as mãos  fecham a pequena carteira em pele, ao mesmo tempo que uma voz  condicente de senhora emite sons apaziguadores.  — Calma, também te vão dar um bilhete — cochicha a senhora ao  seu cão, que, tal como ela, permanece fora do alcance do nosso olhar. Quando a gaveta se volta a abrir, as moedas desapareceram e, no  lugar del...
Translated from NL to PT by Xénon Cruz
Written in NL by Carmien Michels

Os Meninos Escritores

Quase tudo o que aconteceu nesse dia passa-se aqui. Estou com o indicador  apontado à cabeça. Muitos anos depois, enquanto levo o meu filho a  descobrir o gelo, ainda recordo todos os acontecimentos daquele único dia  como «o fuzilamento».  Ninguém morreu. As pessoas eram perigosas, especialmente as  crianças pequenas, penduradas nas árvores. Os pés a balançar — e era da  língua no meio da boca que viriam os piores crimes.   Ouvir dói, caminhar é um truque. Caminhemos.   Mesmo os pequenos ditadores envelhecem. Os filhos coabitam a  terra com os pais, há milhões, talvez milhares de anos. Imagin...
Written in PT by José Gardeazabal

Em casa

O moinho, o caminho para o rio, o poço, os cavalos, as vacas e o trigo. Os baldes rachados cheios de tomates vermelho vivos, os boiões com as tampas bem apertadas cheios de legumes em pickles para o inverno. O estreito rio Severski Don, que alinha os campos todos, que empurra a Rússia contra a Ucrânia, que mantém o mapa unido, da mesma maneira que o meu bisavô Nikolaj cose os casacos com agulha e linha. O vento nas velas do moinho, as meninas do komsomol na praça central da aldeia. Dançam. De braço dado mantêm-se em equilíbrio inclinando o corpo para o lado e elevam-se do chão exatamente com a...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Lisa Weeda

Linguado

Flutuo com a cara dentro da água, sem me mexer. Não chamar a atenção, não gastar energia. Simplesmente boiar. Expirar lentamente, muito lentamente. Pequenas bolhas que me fazem cócegas nas faces quando sobem. No último momento o meu corpo vai estremecer, a barriga vai encolher-se para forçar a boca a abrir-se e, nesse momento, vou levantar resoluta e calmamente a cabeça para fora da água e engolir uma grande golfada de ar. Ninguém dirá «72 segundos!» É um talento que não nos leva a lado nenhum na vida. Quando muito, mais perto de nós próprios. Estou sentada no fundo da piscina e olho para ...
Translated from NL to PT by Lut Caenen
Written in NL by Nikki Dekker

Os Seres Vivos

Capítulo 1 A mamã morreu sozinha e devagar. A causa da morte, dizem os médicos,  foi uma intoxicação. A mamã intoxicada. Grande estupidez. Não discuti  com os médicos, limitei-me a assinar os papéis e a tratar do enterro. Se havia  algo que a minha mãe conhecia bem era a sua farmácia. Sempre foi exata  com as doses. Não se enganava. À menina, por enquanto, contamos-lhe a  versão oficial, a da intoxicação. Um dia contar-lhe-ei eu mesma que a avó  dela se suicidou.   A menina esteve presente em todos os momentos, depois de lhe dar  a notícia levámo-la ao tanatório. Esteve colada às minhas perna...
Translated from ES to PT by Matias Gomes
Written in ES by Mariana Torres

Diário da Vida

17     22 de dezembro de 2014. Diário da Vida     A aparência irreal da Praça de Espanha na fotografia impressionava com  magnificência da civilização anterior já despida do seu sentido. Para que é que uma potência colonial necessita de uma praça tão tamanha, concebida para as festividades de outrora, decorada com os nichos pretensiosamente dedicados cada um a uma província espanhola? As carruagens circulavam ao redor da fonte, oferecendo aos turistas uma amostra barata da pompa da nobreza antiga. Pelo menos não se veem os segways por aqui. Um cavalo aproveitou-se do descuido do cocheiro, ...
Translated from SR to PT by Ilija Stevanovski
Written in SR by Marija Pavlović